sábado, setembro 23, 2006

 

Alegoria do Deserto


Não sei se estão a ver: caminha um homem pela vida, caminha sempre e, a dado momento, repara que o chão que pisa e o ar que respira são já os do deserto.

É isto que acontece com Jerónimo que, surpreendentemente, decide continuar a caminhar.

Não se sabe se o nosso homem resolveu levar a cabo uma travessia completa, se explorar mais um pouco aquele descampado imenso, se perdeu o juízo e está à deriva.

Jerónimo caminha, caminha sempre. A solidão deve doer-lhe. Vai sozinho e, não fora a ternura aparentemente diminutiva desta condição - não se está só, está-se sozinho -, ele só poderia sentir-se saudoso de todos - homens, mulheres e crianças - que deixara para trás nos campos e nas cidades.

Não se apurou, de início, se a obstinação da nossa personagem em permanecer caminhando naquele árido e movediço piso tinha algo a ver com uma qualquer estranha e imediata adaptação física e psicológica ou, porventura, se a sua opção seria como que uma decisão metafísica de caminhar sem rumo coerente por aquele chão de praia quando a esmagadora maioria dos outros seres humanos estão, normalmente, ou todos ao mar ou todos à terra.

Jerónimo tinha já caminhado em terra firme e plausível cerca de quarenta e cinco anos, sempre bem integrado no conforto das suas rotinas, numa série de militâncias sociais, numa Igreja e num sindicato; e diz-se que em mais uma série de ocupações altruístas mas desses alegados factos não se conseguiu prova, talvez porque, dada a sua personalidade de homem desinteressado e modesto se tenha ficado aí, apenas, por compromissos de natureza informal. Razões acrescidas estas para que ninguém percebesse por que razão não regressava Jerónimo à terra fértil de causas, que decerto saberia regressar, a menos que os ventos das circunstâncias lhe tivessem já apagado o caminho que deixara rasgado na areia com as suas inconvictas pegadas.

As conversas de lavadouro, daqueles de quem Jerónimo se separara, abordavam
sistematicamente o tema dos seus eventuais estados de alma, questionavam acerca das vitaminas, dos sais-minerais, das proteínas, dos glícidos, também da água, necessários à sua subsistência.

Entretanto Jerónimo caminhava. E nem a ocupação intelectual de todos sobre a sua situação lhe beliscava a atitude natural de caminhar.

O enigma maior era se Jerónimo teria intenção de atravessar todo o deserto e aparecer um dia, triunfante, do outro lado, de qualquer lado, ou, pelo contrário, se tinha mesmo decidido viver ali.

Para todos era verosímil, embora pouco sensato, que ele tentasse atravessar a pé, desprovido de confortos, o imenso deserto. Sendo um gigantesco incómodo, era, ao menos, uma grande proeza e uma grande proeza sempre se pode ostentar. Talvez o feito lhe trouxesse muito dinheiro, além de fama, e dinheiro e fama é aquilo que faz correr - correr mas não caminhar - quase todos os mortais.

Era possível, no pressentir das pessoas, que para lá da fama e do poder do dinheiro, antes, e do dinheiro do poder, depois, aquela empreitada poderia trazer também algum benefício social, embora remoto e pouco significativo, como por exemplo o de o seu heróico nome vir, porventura, a ser emprestado, um dia, como agente promocional a uma qualquer Associação da Prática de Aventuras Insólitas e de Desportos Radicais.

Todos compreenderiam os eventuais desígnios de Jerónimo se situados dentro dos parâmetros do que fica dito mas já era motivo de espanto geral a hipótese, também equacionada, de que a determinação da nossa personagem fosse mesmo a de ficar a morar no deserto para todo o sempre e não mais voltasse para a sociedade civilizada na qual pode cada um fazer e pensar tudo o que quer, mas onde, prudentemente, todos decidem pensar e fazer o que faz e pensa toda a gente; e todos acabam felizes e ordenados como ordenadas e circunspectas são as ruas das suas cidades, os corredores das suas bibliotecas e a racionalidade do seu viver.

Jerónimo caminhava. Caminhava sempre. A sua atitude de permanente caminhar, parecia, teimosamente, contraditar aqueles que afirmavam a pés juntos que ele se tinha alienado, se tinha acomodado no seu refúgio atapetado de grãos dourados, que tinha calçado as pantufas. E estas posições, predominantes e quase conclusivas, pareciam fazer sentido pois não se vislumbra nenhum ideal respeitável em quem resolve preterir o pulsar do mundo da civilização, o mundo do tudo, em prol do evidente mundo do nada.

Porém, alguma forte lógica teria de haver, aos olhos de Jerónimo, naquela inusitada forma de vida, a menos que a investida constante das areias dançando com o vento lhe turvassem o olhar. Mas isso não era plausível, porque, neste caso, sempre poderiam ver os olhos de uma qualquer razão, de uma qualquer emoção, de uma qualquer alma insondável a olhos comuns.

Admitia-se, em certos meios esclarecidos, que Jerónimo talvez se quisesse resguardar de incómodos, de discussões, de polémicas e de lutas que sempre as há na sociedade dos homens; e começaram a batizar o seu inominado viver de cobardia, de confusão; e de outros apodos que por serem científicos das áreas da psiquiatria e da psicanálise nos dispensamos de enumerar.

De facto, estamos num mundo de homens em que certas lutas são disputadas até à vitória ou derrota finais, sejam elas pequenas quezílias entre vizinhos, sejam disputas partidárias, religiosas ou profissionais; e neste pelejar se salva a honra ou se alcança a glória, ainda que destas conquistas ou perdas, socialmente correctas, se não chegue a capitalizar nem um pouquinho de utilidade ou elevação.

Jerónimo, no seu deserto, ficava indiferente diante de homens que se esmurravam no epílogo de uma qualquer batalha verbal e não ponderava sequer a perspectiva de abandonar o seu deserto para dar um contributo à paz e à equidade sociais. Jerónimo ora observava ora virava as costas. Desertava. No deserto estava.

Muitas teses foram elaboradas sobre a suposta vocação mística de Jerónimo bem como muitas perguntas foram formuladas acerca de tão insólita figura:
- Será ele um profeta?
- Terá sofrido um grande desgosto?
- Andará fugida de algum credor?

Porém o deserto era, para Jerónimo, o seu oásis.

fernando castro martins


domingo, setembro 17, 2006

 

IMPROSAICO

Escusas de ser tão corrosivo, Manel, sobre os meus textos poéticos, dos quais, afinal, dizes ser fã.
Então, a tua crítica obedece também a um género literário? É ironia? É gozo fininho? É grossinho?
Eu sei, escusas de mo lembrar, que a Agustina disse, um dia, algo ao redor de que os poetas são preguiçosos e que os romancistas é que trabalham.
Mas essa excelente e sibilina senhora tem-me dado muito menos trabalho que o seu vizinho Eugénio, pois ando a ler quatro versos dele há cerca de três anos e ainda não acabei. De resto, também leio bastante aquela senhora e acho-a igualmente uma eugénia, isto é, para eu é uma génia, ainda que, às vezes, a julgue um bocado chatinha.
Mas,

OBRIGADO P`LA CRÍTICA MORDAZ
QUE ÉS PRIMAZ NO JEITO DO SARCASMO
E A MEIAS, INEPTO E BOM RAPAZ
MAS BRUTO E BESTA! E AO VER ISSO PASMO!


sábado, setembro 09, 2006

 

Neonata

Nasceu uma mulher no meu prédio. Vivam Elas!
O pai, baboso e festivo; fulgente nos olhos berlindes e lamechinha na dicção soletrada, veio-me dar a notícia dentro de uma camisa formal, embora desabotoada, de um rosa vivo.
Falou das suas duas mulheres como se costuma falar do Céu.
E eu dei por mim a meditar, longamente, na bênção que nos foi enviada, subtilmente, na mesma embalagem que nos trouxe o magnificente género.

Tenho um poema para os três:


joana, paulo, adriana

hoje nasceram todos
nasceu o pai
nasceu a mãe
porque nasceu a menina

o pai embevecido
é uma criança de pai
de alma a brincar-lhe dentro
o peito proeminente

e a mãe se edificando
naquela criaturinha
que não cabia em si de contente
pela sua mãe menina
por aquele pai traquina
que ía ter de presente

28/8/2006


sábado, setembro 02, 2006

 

O sal das férias

A minha entrada num novo emprego sucedeu a cinco dias de férias numa casa serrana, em Rio Maior, que um amigo da família nos ofereceu.
Costumo compor um soneto por cada facto marcante da vida . O que segue deixei-o num postal de agradecimento ao casal anfitrião daqueles dias, Odete e António.

Rio Maior, o Rio em Agosto,
- O De Janeiro é em outro mês -
Tem aroma, "sal", encanto e gosto,
Que este Rio é nosso, é português.

O Rio é centro. À volta é cultura:
Alcobaça, Batalha, Caldas-Raínha;
Óbidos no castelo, bela e pura;
Sons da serra, rezando ladainha.

Fátima, altar do mundo, a paz
Dá a quem a busca, serenamente,
Na Fé, no Povo, e na Natureza.

As Grutas! - Catedrais que a terra faz;
Potes mouros; Antas de antigamente;
No vosso Rio corre esta beleza...

* "sal" porque há ali uma nascente de àgua riquíssima em cloreto de sódio - 96% (a do mar tem só 76%) que alimenta uma indústria artesanal de salinas surpreendente em plena serra dos Candeeiros; Potes Mouros são silos, cavados na pedra argilosa onde os mouros guardavam os cereais; há também, na freguesia de Alcobertas, uma anta monumental junto à igreja e uma nascente de água, chamada de Olhos de Àgua.

 
À espera do "papel"
Em quantos minutos se cria uma empresa, sr Sócrates?
Eu pergunto-lhe, por razões comparativas, dado que o meu empreendimento pessoal era arranjar trabalho, o que consegui depois de enriquecer o meu currículo pessoal com um curso de informática que Vª Exª generosamente me proporcionou, com adequada legislação, através do Centro de Emprego.
O curso durou dois meses e meio e eu fiquei, digo-o com exagero, competentíssimo naquelas matérias. Então, de peito inchado, fui para a porta de uma empresa dizer que sabia muito bem sabido o que me fora ensinado. Como tenho bom aspecto, e sobretudo muita lata e lábia, empregaram-me logo, absolutamente confiantes nas competências que eu dizia possuir. E a confiança é tudo na vida, como se prova, já que o saudoso certificado de aproveitamento que há-de fazer de mim um pequeno doutor, está atrasado dois meses mais uns minutinhos. Eu comecei ontem, dia 1 de Setembro, o meu novo trabalho, e prometi ao meu patrão que não passa do Natal sem que eu lhe entregue o papelucho. Mas, nessa altura, o folheto já nem lhe interessará a ele nem ao Menino Jesus.

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