quarta-feira, dezembro 31, 2008

 

Temas de Braga - 20


A Agere, empresa das águas e das limpezas da urbe bracarense vai, segundo o seu administrador Nuno Ribeiro e a informação do Diário do Minho, instalar cinzeiros na cidade, para que os fumadores da rua não conspurquem o piso do centro histórico e não danifiquem a natureza com a nicotina, o arsénio, o cádmio, o chumbo, o alcatrão, etc.
Boa intenção, sim senhor, Senhor Nuno Ribeiro. É preciso civilizar a cidade, é preciso urbanizar os cidadãos. E o senhor tem a logística para executar o plano. E a determinação. E os meios financeiros. E a vontade politica. Parabéns, portanto, quatro vezes.
Todos verificamos que, hoje, quase todos os fumadores educados disparam as suas beatinhas para o chão, como ao chão ofereciam, antigamente, pessoas igualmente educadas para os padrões da época, todo o tipo de dejecções corporais, fossem elas sólidas, líquidas ou viscosas, provindas de todos e quaisquer dos seus orifícios, quando estes se encontravam sem meios para desobedecer às intransigentes ordens da natureza. E educadas eram estas pessoas quando executavam as suas excreções com alguma discrição, por exemplo não exibindo em demasia as partes corporais habitualmente cobertas, usando para isso os passivos serviços de paredes, árvores ou arbustos, ou quando, ao apertar as abas do nariz, evitavam disparar directamente sobre alheias indumentárias, o que não fora pedido nem era desejado.
Hoje os padrões e os paradigmas são diferentes, mas ninguém se lembrou, ainda, de passar a guardar no bolso as coriscas dos cigarros, tal como nos bolsos se passaram a guardar os moncos das ventas, a certo passo da caminhada da civilização, envoltos estes, agora, em esbeltos lenços de seda, de algodão ou de linho.
Pois ainda estou a falar consigo, Senhor Nuno Ribeiro: não seria o senhor capaz de inventar uns cinzeirinhos de bolso e propô-los à cidade, tal como acaba de inventar, e muito bem, os cinzeiros de rua? Olhe que tem Vª Ex.ª inteligência para isso. Peço-lhe só que os mande fazer com bom design e com uma tampinha hermética para que não venham a danificar fatos e vestidos e os ofereça, em cada dia de Ano-Novo, aos bracarenses fumadores, como outrora mandavam os seus serviços oferecer a todos agendas e calendários, estes sim, já dispensados pela civilização.
Um Bom Ano, Senhor Nuno Ribeiro, de felicidade no seu inestimável serviço de cidadania.

 

Altas Palavras - 2


"... De novo o Arco da Porta Nova e um perfume doce. (...) Mais do que dois mil anos de passado, todos temos dois mil anos de presente".

(João Martinho, in "Obrigados a Entrar em Braga Algo Desconfiados", AA.VV. Fundação Bracara Augusta, Dez. 2008)


terça-feira, dezembro 30, 2008

 

Altas Palavras - 1


"
Braga é um jardim nosso de um museu romântico".

(Joana Jacinto, in "Obrigados a Entrar em Braga Algo Desconfiados", AA.VV. Fundação Bracara Augusta, Dez. 2008)


segunda-feira, dezembro 29, 2008

 

Se os Outros Fossem Fixes eu Também Seria...


António Lobo Antunes acha que "os livros em Portugal são indecentemente caros" e está indignado, porque, "quem lê não são as classes altas, é a classe média/baixa", como a sua própria classe, nascido num bairro "onde as pessoas comiam pão com cebola".
Esta informação é-nos trazida por Marcos Cruz, através do Diário de Notícias da passada segunda-feira, em que nos dá conta, também, de novo prémio arrebatado pelo escritor e de um seu novo livro em gestação.
Mas Lobo Antunes confessa, aparentemente sem dores de peito, que recebe uma alta comissão de 17% sobre as obras que publica, mas recusa baixar esta choruda percentagem porque, "se os outros não o fazem, não vou ser eu a fazê-lo".
Eu estou desde há muito persuadido de que os bons escritores desempenham já, pelo seu labor sublime, um relevantíssimo papel social; mas, fico agora a saber que aquele grande senhor encolhe-se, sem necessidade, para ficar à altura solidária dos mais pequeninos.
Parabéns ao escritor; sarrafada no homem.


domingo, dezembro 28, 2008

 

Com a Devida Vénia - 3


"Se Jesus viesse agora fazia as mesmas coisas, simplesmente de outra maneira! No tempo dele, tomou posições drásticas em relação à Igreja, hoje também. Não estaria de acordo com uma Igreja demasiado hierarquizada, torná-la-ia mais democrática. Não poria problemas à ordenação de mulheres".

Pe Carreira das Neves, professor jubilado da Universidade Católica Portuguesa.


sábado, dezembro 27, 2008

 

Escola EB1/JI – Fujacal – Natal 2008



Este é um pequeno texto de Natal que compus para os meninos da minha escola, e, ao que parece, eles decoraram muito bem:


Coro

A Escola é…
Se queremos aprender!
A Escola é…
Se todos dermos a mão!
A Escola é, é, é, é…
- EB1/JI – Fujacal! –
Do meu coração!

1

Acordo de manhã
p’ra ir à Escola
com pressa de encontrar
os meus amigos,
as minhas professoras
e os meus professores
que nos ensinam
coisas para a vida.


2

Eu gosto muito
de jogar à bola
à corda e à macaca
no recreio
eu gosto de aprender
o mundo conhecer
e desejo crescer
sem ter receio.


3

São muitas
as luzinhas na cidade
mas nenhuma brilhando
mais que esta:
todos com alegria
em paz e harmonia
que Jesus também
veio à nossa festa.


sexta-feira, dezembro 26, 2008

 

O Elefante Pariu um Rato


Um outro dos meus presentes de Natal foi "A Viagem do Elefante", de José Saramago. Acabo de ler o livro, e devo referir que não o achei grande coisa. Há ali um mastigar constante de palavras, um martelar sempre no mesmo, uma narrativa a marcar passo ao ritmo do pesado paquiderme em viagem, de duas juntas de bois que o acompanham para transportar a logística da caravana, uns senhores a cavalo e outros a pé, cada qual a acertar o andar pelos elementos mais lesmas do cortejo, enfim, uma prosa sem graça nem espanto.
Há, aqui e ali, uns retalhos de ironia mais ou menos conseguidos e algumas páginas em que o autor se esforça por nos lembrar a sua obstinação pelos temas religiosos, que aborda sempre de modo nada respeitoso e muito intolerante.
Confesso que tinha decidido adquirir o livro, e quem mo ofereceu estava seguro da poupança que me proporcionara. Mas eu estava à espera de muito melhor.


quinta-feira, dezembro 25, 2008

 

Obrigados a Entrar em Braga...


Acabo de receber, como presente natalício, um livro de que sou co-autor mas desconhecia estar já publicado. Chama-se "Obrigados a Entrar em Braga Algo Desconfiados", título em analogia a uma obra de Manuel Teixeira Gomes, escritor e presidente da Primeira República portuguesa, onde romanceia uma visita à nossa cidade.
Foi uma grande felicidade, trazida pelos meus filhos gémeos, Pedro e Mariana, que igualmente esconderam a novidade do seu irmão mais velho, João Martinho, também com um texto na obra referida.
O livro é editado pela Fundação Bracara Augusta, na sua colecção "Braga, Cidade Bimilenar", e resulta da reunião dos textos premiados no concurso promovido pelo "Estaleiro Cultural Velha-a-Branca" e por aquela prestigiada fundação bracarense, em Junho passado.
O meu texto, denominado "em nome do pai e do filho" e o do João Martinho, com o título "instantes eternos", estão, assim, entre as treze prosas premiadas, num total de quarenta e cinco apresentadas a concurso.
Escrevo este post, também, em nome do pai e do filho...

 

O Natal da Minha Biblioteca - 25


"O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; para aqueles que habitavam nas sombras da morte uma luz começou a brilhar. Multiplicastes a sua alegria, aumentastes o seu contentamento. Rejubilam na vossa presença, como os que se alegram no tempo da colheita, como exultam os que repartem despojos. Vós quebrastes, como no dia de Madiã, o jugo que pesava sobre o povo, o madeiro que ele tinha sobre os ombros e o bastão do opressor. Todo o calçado ruidoso da guerra e toda a veste manchada de sangue serão lançados ao fogo e tornar-se-ão pasto das chamas. Porque um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado. Tem o poder sobre os ombros e será chamado «Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz». O seu poder será engrandecido numa paz sem fim, sobre o trono de David e sobre o seu reino, para o estabelecer e consolidar por meio do direito e da justiça, agora e para sempre. Assim o fará o Senhor do Universo".


(Da Bíblia, "Livro de Isaías", 765 - 681 a.C.)


quarta-feira, dezembro 24, 2008

 

Natal: Festas & Ceias, Lda


O Natal é a festa de todas as famílias de cada um: da que temos em casa, da que temos no trabalho, na escola, na associação, na igreja, no partido, e por aí fora... Quem está muito socializado tem natais que nunca mais acabam.
O meu Natal começou na festa da escola do Fujacal, onde trabalho. Coube-me a tarefa de apresentar o espectáculo dos meninos, vestido de Pai Natal, no auditório do Parque de Exposições de Braga. Isto foi na quinta-feira passada. Na sexta, tive almoço na cantina da escola com auxiliares da associação de Pais; à noite, fui ao jantar do agrupamento, na André Soares, que se destinava a todo o corpo docente e auxiliar. Na segunda-feira passada, estive na reunião do Conselho Geral Transitório da Alberto Sampaio, onde tenho assento pelo lado da associação de pais desta escola, e lá estava o lanchinho de Natal. Ontem, houve lanche do pessoal auxiliar na André Soares.
Só hoje chego a casa para a ceia natalícia da minha família, propriamente dita.
É um corridinho, uma farturinha, o Natal, nos dias de hoje.


terça-feira, dezembro 23, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 24


"Foi numa noite de Natal que aquilo aconteceu. O irmão, a cunhada e os sobrinhos acabavam de sair - ainda se ouvia chiar o carro na curva da estrada - e Emília, depois de pôr no presépio um último olhar distraído, encostou-se à vidraça a ver a noite. Era uma noite funda e enorme de descampado, sem luar e toda redonda de estrelas. Ao longe, o sino da igreja da aldeia soltou um toque leve e risonho de festa, que rompeu o silêncio. Da cozinha, onde lavava os copos do vinho doce, veio a voz monótona e cansada de Dores:
- O João já não apanha o princípio da missa.
Emília estremeceu. Quis responder à mãe, dizer o que quer que fosse, mas o silêncio da noite tinha-a envolvido toda e não conseguiu articular um som. Também não podia pensar. Era como se se tivesse dissolvido naquela atmosfera calma e deixado por completo de existir. Depois a mãe tossiu e ela lembrou-se de repente de que já ali não estava para outro Natal. Sorriu contente à imagem de Joaquim. O que estaria ele a fazer naquele momento, lá longe, perdido na cidade, sem família, sem amigos, sem ela... Na última carta parecera-lhe desanimado, mais ainda do que nas outras".

(De "Noite de Natal", de Maria Judite de Carvalho, 1921-1998)


segunda-feira, dezembro 22, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 23


"Porém, aquele Natal, que começara por acender no Chiado tantas estrelas quantas as contribuições de que os comerciantes se carpiam, abriu-lhe a gaiola, um tanto enferrujada, da imaginação e dela saiu, à hora do almoço, o pássaro-lira das acções exemplares:

- Meninos, este ano vamos assinalar a noite de Natal com uma obra de caridade. Todos vocês, descansem, hão-de ter os presentes do costume. Mas há-de haver uma surpresa, e têm todos que assistir: vamos fazer a felicidade de um pobre.
(...) Convinha-lhe encontrar, isso sim, um pobre submisso, um desses santinhos rotos com o céu já assegurado, que beijam as mãos e os pés aos seus benfeitores. Mas havendo tantos desses pela cidade em dias vulgares, tantos que às vezes tinha a criada a enxotá-los rispidamente da escada de serviço, em horas de inflacção, nem um só, naquela ventosa véspera de Natal, mostrava a face conformada (ou matreira) de mártir integrado na sua missão".

(De "A Samarra", de Urbano Tavares Rodrigues, 1923 -)


domingo, dezembro 21, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 22


"A função dele era ficar em frente ao supermercado, vestido com um pijama vermelho, e de barrete na cabeça. Como estava magrinho, foi necessário amarrarem-lhe duas almofadas na barriga. Pascoal sofria com o calor, suava o dia inteiro debaixo do sol, mas pela primeira vez ao fim de muitos anos, sentia-se feliz. Assim vestido, com um saco na mão, ele oferecia prendas às criancinhas (preservativos doados por uma organização não governamental sueca ao Ministério da Saúde) e convidava os pais a entrar na loja. "Sou o Pai Natal cambulador", explicou ao general.
Cambulador foi ofício em Angola até à primeira metade deste século: gente contratada para aliciar clientes à porta dos estabelecimentos comerciais. Cada dia Pascoal gostava mais daquele trabalho. As crianças corriam para ele de braços abertos. As mulheres riam-se, cúmplices, piscavam-lhe o olho (nunca nenhuma mulher lhe tinha sorrido); os homens cumprimentavam-no com deferência:
- Boa tarde, Pai Natal! Este ano como é que estamos de prendas?
O velho apreciava sobretudo o espanto dos meninos da rua. Faziam roda. Pediam muita licença para tocar no saco. Um, pequenino, fraquinho, segurou-lhe as calças:
- Paizinho Natal - implorou -, me dá um balão".

(De "A noite em que prenderam o Pai Natal", de José Eduardo Agualusa, 1960 -)


sábado, dezembro 20, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 21


"Criança que era, o Necas só muito raramente acordava no meio do sono com as movimentações tardias que naquela casa estavam a ser o teor diário. Mas na véspera do Natal, o silêncio foi inesperadamente tão grande que o Necas passou toda a noite numa excitação que nem te digo. Coisas de crianças, coisas da quadra?
Ao levantar-se, pés nus, para ir ver o sapatinho, o Necas já ia a bordo dos patins que a mãe lhe prometera. Quando deu com o pai, apoucado, a acenar-lhe amigavelmente da amurada do sapato, Necas fugiu a procurar no regaço de Quinhas [a mãe] a verdadeira dimensão do seu horror:
- Sa... sa... saiu-me o... o... o pai no sa... sa... sapato! - soluuuuçava o órfão de vivo. E a mãe, ultrapassada pela reacção do Necas, consolava-o como ia podendo, prometendo-lhe que o pai voltaria a crescer, a crescer".

(De "Exercícios de auto-apoucamento (com vista ao próximo Natal) ", de Alexandre O' Neil, 1924 - 1986)


sexta-feira, dezembro 19, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 20


"...Veio a pingoleta, e talharam-se os cigarros, e sem dar tempo a perguntas, o velhote, adivinhando o fim da nossa estada, começou logo a fazer a história do seu título.

- Ali no convento há um presepe, que há quatro anos era o enlevo de Évora, e armava-se no claustro em todas as vésperas de Natal. As figuras são todas de barro, maiores que humanas, mas expressivas que se alguma delas falasse, estou que ninguém levaria isso à conta de milagre, tanto parece estarem vivas, e respirando como qualquer criatura de Nosso Senhor. As freiras já não querem mostrar aos visitantes o presepe, desde que um barrote fez em bocados o rei preto, e deitou meia faceira abaixo ao S. José; mas acho que nem assim deviam ocultar obra tão rica, privando os entendidos dum gozo que não tem igual cá na cidade..."

(De "O Menino Jesus do Paraíso", de Fialho de Almeida, 1857 - 1911)


quinta-feira, dezembro 18, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 19


"'Venha até lá casa no Dia de Natal', tinha-me dito aquele compatriota. 'Temos polvo guisado à portuguesa, e um arroz de amêijoas que o prepara Don Rufas. Vai ver que não se arrepende. Aquilo o que tem é ser casa de pobres'.
Não faltei ao convite, e não me arrependi.
Nunca perco o ensejo de ver como vive a nossa gente cá por estas bandas. Como vivem os de Nova Inglaterra já eu sei. Mas por aqui é diferente.
A casa é ali no East Side, na Rua 29, entre os italianos, num terceiro andar. Em quase todas as janelas há coroas de azevinho e buxo, por vezes uma vela acesa, uma mensagem de paz e alegria para quem passa na rua. Ao entrar, deixamos lá fora, na azulada luz do entardecer precoce, um resto de neve encarvoada, e a solidão que invade as ruas de todas as grandes cidades nestes dias de festa e de frio.
Subimos. De todos os apartamentos vêm gritos, música, risadas, aromas culinários. Uma subtil nostalgia de exilado despolariza-me: desejo, nestes dias de memórias festivas, estar por toda a parte onde fui deixando o coração em pedaços.
(...) Dora, a dona da casa, vem à porta num riso, e ajuda-nos a tirar os abafos, as galochas que pingam neve derretida.
(...) A cozinha tem uma janela para o pátio estreito, ou caixa de ar, que nos separa do prédio contíguo. Pelas vidraças embaciadas de vapor entrevejo vultos, pares que dançam, árvores de Natal iluminadas. Num parapeito, quatro vasos de flores, suspiram pelo sol.
Dom Rufas, rubicundo e lustroso, de óculos e avental de riscado, mangas arregaçadas, charlando com o mulherio, prepara entre rolos de vapor um colossal e rescendente arroz de "almejas". O meu anfitrião destapa uma panela fumegante, e revela-me o prometido polvo, chegado há dias de Portugal, no gelo. O estômago dos expatriados tem destas fidelidades.
(...) E quando se abre o forno e sai lá de dentro, com a majestade duma cerimónia episcopal, um formidável lombo de porco assado - um rolo tostado, todo atado e fumegante, nadando no molho de oiro líquido que perfuma a casa inteira, e mais, a memória deste dia pelos anos fora - não posso conter a exclamação risonha e comovida:
- Abençoada seja a fartura dos que trabalham, para todo o sempre!
E em coro os pobres - ricos só da força do seu braço e da sua vontade - dizem comigo:
- Amém!
A rádio estruge. Lá fora a neve, a neve festiva que adorna e purifica o negrume dos "slums" da cidade, recomeça a cair... Os pequenos gritam de entusiasmo e correm para a rua, arrebatando os agasalhos de inverno. A neve! A neve!
É o que se chama um Natal branco".

(De "Natal Branco", de José Rodrigues Miguéis, 1901 - 1980)


quarta-feira, dezembro 17, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 18


Natal. Já tudo dorme, e só eu, em casa, rumino ainda as rabanadas. Que significam elas, afinal? O mundo está realmente povoado neste momento por uma nova esperança? Não se ouviram passos auspiciosos ao dar a meia-noite, nem houve, com certeza parto divino em nenhuma maternidade ou estábulo. Mas sabe-se que os grandes enviados chegam sem ruído, que o nascimento de que se trata é doutra natureza, que a luz esperada tem de acender-se dentro de nós. Por isso, quando digo mundo penso nos meus próprios limites, e neles procuro descortinar os sinais concretos da maravilhosa presença. Timidamente, aflora-me aos lábios uma palavra, que só de ser balbuciada aviva a chama da lareira. Amor - repito, alvoroçado. Mas não vou mais longe. Desalentadoramente, a boca, como um sino sem alma, deixa de vibrar. É que por artes de não sei que espírito invisível e demoníaco, começa a desfolhar-se diante dos meus olhos um calendário de dois mil anos. E, nele, a palavra mágica, que impulsivamente me saíu da alma, escrita em vão duas mil vezes..."


(De "Diário - IX", de Miguel Torga, 1907 - 1995)


terça-feira, dezembro 16, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 17


"Pois se comeres a sopa, conto-te... Foi o que disse a avó. E, porque a comi toda, até chorar por mais, e não deixei nada na tigela, e fui muito bonito para ser ainda mais gordo, sempre contou.

Contou que, noutros tempos (ainda os burros falavam!) lá por uma estrada fora iam andando três senhores. Cada qual o de mais teres, logo os vereis! - não eram pimpões nem soberbões. Trajavam de imperadores, com grandes mantos de pelúcia, cheios de anéis de pedras finas e de coroas à cabeça. Tinha cada um seu ceptro com que espertava a mula (pois iam escanchados), e na ponta de cada um daqueles pauzinhos de prata uma pomba poisava o pé leve, cortado no puro oiro.
Se te digo que em riqueza ninguém lhes passava a perna - pois só visto aquele asseio e tenteado ao pé pelo Sr Matos (que é um ourives dos primeiros) se podia dizer quanto valiam. Mas nem por terem tantos cabedais e aquelas honras todas (o seu dá-se a seu dono) aqueles grandes figuros eram toleirões. Não! Eles, que tanto podiam, e tinham baraço e cutelo, e às portas do palácio árvores de galho rijo para enforcar os salteadores; eles, que eram abaixo de Deus, e, assim podiam matar e ferir sem apelação nem agravo, e intimarem os pobres a porem para ali o seu dinheiro, a novidade e a horta das virgens (hein?!...), pelo contrário eram mansos, e tinham falas de mansos.
Nas noites frias de gelo em que os telhados voavam, se punham pingando as borralheiras e um vento forte sacudia as arcas do pão sem migalha, desciam os três reis de seus tronos, talhados na pedra mármore, e lá iam de rota batida... (...)

(Eu - "E depois? E depois?!"
A avó: - "Espera homem! Lá vamos...")

(...) Quando a avó se calou , fiquei escoroçoado:
- E o resto, avó, e o resto?...
- Acabou-se o que era doce e o que era mel derramou-se... - disse ela apanhando a tigela da sopa vazia".

(De "Os Reis Magos", de Vitorino Nemésio, 1901-1978)


segunda-feira, dezembro 15, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 16


"Eu sentia-me vagamente cão. Nem admira. Quando um homem tem o coração cheio de epitáfios e vê outras pessoas felizes, é natural que se sinta cão.
Gente que sai das pastelarias irradiando espírito natalício; votos de boas-festas; música de sinos... Aquilo produzia-me um vácuo interior pior que a fome.
E lá ia eu pelas artérias da minha cidade, sob túneis de luz, as mãos enfiadas nos bolsos do capote, cabisbaixo, bafejando. Oprimia-me o ar radioso dos já raros transeuntes, a forma como passavam por mim, carregados de embrulhos coloridos, sem me verem. Que horas tão pungentemente evocadoras!
Existia uma via de fuga: embriagar-me. Pois sim, mas onde? Nesta cidade da província - na cidade onde eu nasci - não há nada aberto em noite de Consoada: até a taberna mais reles está fechada. Cafés, cinemas, tudo fechado. Restava-me, portanto, vaguear sozinho por artérias desertas; sob túneis de luz, ouvindo música de sinos - a gola do capote subida para as orelhas, tristonho, cada vez mais cão.
- Eh, mestre!
Era o Fonseca - tipo esguio, amarelinho, que trabalha num banco. Conhecera-o há meses. Sempre que passava por mim cumprimentava-me com uma espécie de condescendência, sem se deter.
Desta vez deteve-se.
- Então mestre, que se faz?
Falou com jovialidade, apertando-me vigorosamente a mão. Aquela mãozada e aquelas palavras estavam cheias de calor, de calor humano. Sentia-me menos cão".

(De "Noite de Consoada", de Altino Tojal, 1939 -)


domingo, dezembro 14, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 15


"Em torno da mesa de pinho ceiam as mulheres. Com os cotovelos fincados nas tábuas, olham o vinho quente e cismam... Ceia de Natal! Ceia de Natal... Até as prostitutas se querem lembrar... Moídas de pancadas, têm más palavras, gritos, e um sorriso humilde. Fazem-se pequeninas para que lhes perdoem uma vida infame.

Falam! Falam!... Parece que a mesma primavera negra fez dar emoção a estas criaturas exploradas e servidas. Lembram-se da sua vida, sempre lágrimas, risos sem piedade... Uma começa:
- Ninguém canta?
E logo outra, como se as palavras lhe saíssem de golfão:
- Eu cá foi por fome que me desfrutaram. Ninguém queria saber de mim e a minha madrasta calcava-me aos pés.
- Eu não sei como foi...
- E eu então - continua - foi por fome. O meu pai estava encarangado e a minha madrasta era tão má, que, por eu me demorar num recado, partiu-me um braço.
- Pois eu foi assim de repente... - diz outra. - Ia pela rua fora. Vinha da fábrica, começou a chover e uma lama!... Tinha frio e um homem pôs-se a falar-me ao ouvido e a levar-me. Eu nem sei como aquilo foi... E a falar, a falar, até me doía o coração! E nunca mais o vi. Se o vir acho que nem o conheço.
- Enganam e nunca mais querem saber.
- A minha mãe bem me pregava mas a gente que há-de fazer?
- Ontem os soldados puseram-me o corpo todo negro - diz uma.
E mostra a triste carne magoada, os seios murchos e com nódoas. No ombro os ossos furam-lhe a pele.
- Quando eu morrer... Oh quando eu morrer!...
- Tola!
- Que tem? Tenho ali a roupa apartada.
- A mim, enganaram-me, levaram-me... Eu não sabia nada. Depois comecei a servir. Enganavam-me e punham-me fora... Depois não tinha mais para onde ir...
- Eu cá tive um filho...
Uma que estava calada soluçou no escuro. E como todas se voltassem pôs-se a rir e a ajeitar os cabelos.
- Eu tive um filho e pus-me a criá-lo. Depois disso o meu amigo nunca mais quis saber. Quando eu o procurava ria-se. Mostrava o inocente e ele punha-se a rir. - Mulheres não faltam, dizia-me. Vai-te! - E a gente fica feia. Vai um dia e disse-me: - Se cá tornas chamo a polícia. - Eu chorei até não ter mais lágrimas e acabou-se tudo. São todos o mesmo. Noutro dia vi-o, mas ele fingiu que não me conheceu.
- E o teu filho era bonito?
- Era um anjinho do céu. Tanto chorei que secou-se-me o leite de chorar. A gente sempre é mais tola!... Pôs-se muito chupadinho e morreu".

( De "Natal dos Pobres", de Raúl Brandão, 1867 - 1930 )


sábado, dezembro 13, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 14


"Era uma vez certa rapariga selvagem que guardava ovelhas e encantava pássaros.
O pai, pastor em Belém, levara-a consigo ao Presépio no dia do primeiro Natal - era ela ainda pequenina, poucochinho maior do que o Menino Jesus.
O Menino sorrira-lhe. Nunca mais esqueceu aquele sorriso e, desde então, ano após ano, acorre ao estábulo logo que o Anjo do Céu principia a entoar o "Glória", para oferecer a sua prenda de anos. Traz sempre o mesmo: um pássaro. Pousa-o, de asas frementes, à beira do Presépio e o pássaro canta para o Menino.
Da primeira vez arranjara um pintassilgo cuja voz, embora fraca, se esforçara o mais possível "cui... cui", inclinando levemente para a banda a cabecita salpicada de encarnado. Depois apareceram, cada um por sua vez, - à medida que a rapariga ia crescendo - o tentilhão a prometer cerejas ao Menino Jesus... a toutinegra palradeira a falar-lhe, infindavelmente do verão, das flores e do mais que se segue... o melharuco a furar, insistente, um buraquinho no azul do céu a fim de tentar fazer dele alguma porta... o melro, esse abriu o bico e deixou rolar, do seu papo negro, grossas pérolas redondas de azul... e o pintarroxo... e o verdelhão... e a carriça... e o pisco... e a alvéola... e outros ainda, de que talvez os anjos se lembrem mas eu não".

(De "Natal do Pássaro Morto", in "Natal de Cada Um", de Marie Noël, [pseudónimo?])


sexta-feira, dezembro 12, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 13


"- Ora, a mãezinha bem sabe que as mulas são amaldiçoadas... as mulas diz que são amaldiçoadas.
- Isso são histórias - aclarou o pai.
- Não são tal! - insistiu Eugénia com vigor. - No Presépio a vaca chegava palhinhas ao Menino, para o agasalhar, e vai a mula comia-as. Por isso a Senhora a amaldiçoou.
(...) - E também amaldiçoou a perdiz - continuou muito sério o rapaz. - Só a pena...
- Conta lá... - disse-lhe a mãe, momentaneamente distraída.
- Foi assim...Quando nossa Senhora fugiu, um bando de perdizes, levantando-se-lhe na frente, assustadas, espantou-lhe a burrinha e deu sinal ao inimigo. Vai a Senhora, exclamou: "Malditas sejais!". São José respondeu: "Não, coitadas! a carne, não... Só as penas.

(...) - Comes? - perguntou o pai.
- Ai, não! Trago uma fome de pedras... vou já começar aqui por estes ovos verdes.
- Mas que conversa era essa então com que estavam de maldições?... Eu ainda ouvi...
- Falava-se de quando foi da fuga de nossa Senhora com S. José e o Menino. Diz-se que ela amaldiçoara então a mulinha do presépio, os tremoços, as perdizes...
- Ainda me lembro!
- Sabes mais do que nós...
- Pois então! contava-me aquela nossa criadita velha, a Emília... Ora espera, como era?... Ah! Quando Nossa Senhora ia a caminho, os bisbilhoteiros dos noitibós iam na frente, a gritar. "Ela aqui vai! Ela aqui vai!" E atrás as cotovias, apagando as pegadas da burra com as patitas, diziam: "Mentira! Mentira!" Por isso Nossa Senhora abençoou estas e amaldiçoou aqueles.
- É verdade, mamã? - perguntou com interesse o Josezito.
- O papá nunca mente".

(De "A Consoada", de Abel Acácio de Almeida Botelho, 1855 - 1917)


quinta-feira, dezembro 11, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 12


"Lisboa prepara neste momento a festa de Natal.
Grandes rebanhos de perus, enrabeirados de lama, espalham no macadame, as suas manchas movediças e escuras, de reflexos de aço, adornadas das florescências brancas e vermelhas dos moncos. Pessoas idóneas pastoreiam esses galináceos guiando-os a golpes de cana por entre as rodas dos trens e por entre as pernas dos viandantes. Na compra destes perus convém escolher os mais teimosos: à força de cana são esses os mais tenros.
Porcos gordos transitam igualmente pela via, mas em número inferior ao dos perus, de rabo torcido em saca-rolhas, focinho baixo, orelha caída sobre os olhos, meditabundos, resignados na profunda convicção filosófica de que, ou seja para já, ou seja para o Entrudo, o destino da espécie é acabar em postas, esfregadas a alho, acamadas na salgadeira.
(...) O "Diário de Notícias", que é o grande espelho da vida burguesa de Lisboa, traz hoje cerca de oitenta anúncios de brindes de Natal. Há-os nesta colecção de todas as espécies: jóias, bonecos, livros, cromolitografias inglesas, flores, perfumarias, faianças, charutos de Havana, etc. mas o que predomina é a comida. Todas as especialidades culinárias se anunciam em grandes doses: os paios de Castelo de Vide, os presuntos de Melgaço, os vinhos da Fuseta e de Borba, as arrufadas de Coimbra, os biscoitos de Oeiras, as queijadas de Sintra, a marmelada de Odivelas, os mexilhões de Aveiro, as frutas secas de Elvas e de Setúbal, o pão-de- de Margaride, o maçapão de Espanha, o caviar da Rússia, a mortadela de Itália, as "pralinés" e os "marrons glacés" de Paris, o salmão da Escócia, a "choucroute" da Alemanha, as enchovas da Suécia, o curaçau e os arenques da Holanda. Dir-se-ia que uma indigestão nacional se prepara e que o estômago de Lisboa vai rebentar de fartura amanhã".

(de "A Festa de Natal - A Festa das Crianças", de Ramalho Ortigão, 1836 - 1915 )


quarta-feira, dezembro 10, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 11


"As bodas de oiro tinha-as celebrado o senhor Timóteo na casa dos oitenta. Uma década decorrida, estava ainda rijo e fero. Era o primeiro que se levantava na aldeia e, se não estivesse a chover, invariavelmente pegava do sachinho e ia mondar as ervas do quintal. Se o tempo estava mau, punha os óculos de aro fino de prata como se usavam antigamente, e com eles a escorregar da ponta do nariz enfronhava-se pela décima centésima vez numa página de Camilo. Então a Zezinha, antes de entrar, espreitava o avô. Sucedia amiúde soltarem-se-lhe as lágrimas dos olhos e ele tinha vergonha que lhas vissem.
O Senhor Timóteo pertencia à geração que fez o 31 de Janeiro e em conformidade era republicano de gema, e professava um liberalismo romântico e generoso. Era bastante culto, pouco devoto, à missa só ia à do Galo, e todavia sabiam-no muito mano-a-mano com o padre. Como o seu patrício Leite de Vasconcelos, costumava dizer: "Façam-me o enterro em sagrado porque, além de ser essa a lei de meus pais, etnograficamente é muito mais interessante que a civil".
À primeira missa do dia de Natal é que não faltaria por nada deste mundo. Fechavam-se as portas na casa e ia tudo. Ele caminhava atrás, mais devagar que os filhos, mas em regra não precisava doutro amparo além do braço da Zezinha. E era ainda mais para se guiar, porque já não enxergava bem, do que para ter arrimo, posto que não faltasse criado adiante com o lampião. À sua chegada, mesmo que a igreja estivesse coalhada de povo, abriam-se alas. E prosseguia no genuflectório, que à Quinta Grande era dado ter estrado próprio na imediação do púlpito.
(...) O senhor Timóteo tinha enterrado debaixo das lages na igreja os seus avós e era mormente por causa deles que vinha ali na santa noite de Natal.

(De "A Missa do Galo", de Aquilino Ribeiro, 1885-1963)


terça-feira, dezembro 09, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 10


"Nas velhas cozinhas, em redor da mesa e ao fulgor da lareira, agrupa-se a família. Os velhos e as velhas, remotas esculturas enegrecidas e cariadas pelo tempo; os filhos que estavam ausentes e que puderam vir e os que ainda andam fraldiqueiros a crescer. O fiel amigo, as couves e batatas, é a tradição; quem tem mais posses, frita, também, a sua rabanada. O vinho corre, rosado, transparente, sobretudo à hora do magusto, quando as castanhas estalam no fogo.

Cada lar parece viver isolado, como se para lá das paredes negras de fuligem nada mais existisse.
(...) A garotada já largou da mesa e procura, irrequieta, tirar da fogueira as castanhas. O vento canta na chaminé e vem agitar, de leve, a crista do lume.
As figuras movem-se lentamente em direcção ao pedaço de laje onde há fogo e a candeia fica a alumiar, sobre a mesa, a travessa vazia com um fio de azeite no fundo e um farrapo de couve nos bordos.
(...) O povo deita-se, hoje, mais tarde. O Menino Jesus merece um quartilho de petróleo".

(De "O Natal em Ossela", de Ferreira de Castro, 1898 - 1974)


segunda-feira, dezembro 08, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 9


"Naquele tempo, o Anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma Virgem desposada com um homem chamado José, que era descendente de David. O nome da Virgem era Maria. Tendo entrado onde ela estava, disse o Anjo: «Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo». Ela ficou perturbada com estas palavras e pensava que saudação seria aquela. Disse-lhe o Anjo: «Não temas, Maria, porque encontraste graça diante de Deus. Conceberás e darás à luz um Filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande e chamar-Se-á Filho do Altíssimo. O Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai David; reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o seu reinado não terá fim». Maria disse ao Anjo: «Como será isto, se eu não conheço homem?». O Anjo respondeu-lhe: «O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. Por isso o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus. E a tua parenta Isabel concebeu também um filho na sua velhice e este é o sexto mês daquela a quem chamavam estéril; porque a Deus nada é impossível». Maria disse então: «Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra".

(De "Bíblia Sagrada", de S. Lucas, Século I)



domingo, dezembro 07, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 8


"Um dia uma Professora teve uma ideia de Professora e mandou aos seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Claro está que não empregou esta linguagem, o que disse foi. "Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, as aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira. Uns com lápis, outros com aguarelas, outros com papel recortado, alguns pintando com os dedos, todos cumpriram o melhor que puderam. Apareceu tudo quanto é costume: o presépio, os reis magos, os pastores, São José, a Virgem e, inevitavelmente, o o Menino Jesus. Bem feitos uns, mal feitos outros, toscos ou esmerados, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da Professora. Ali mesmo ela os viu e lhes pôs nota. Ia marcando "bom", "mau", "suficiente", como se esses juízos os marcasse para a eternidade. De repente, ah, quantas vezes teremos ainda de dizer que é preciso muito cuidado com as crianças! A Professora segura um desenho nas mãos, um desenho que não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está confusa, perturbada: o desenho mostra a invariável manjedoura, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena já sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?

"Porquê?", pergunta a Professora à Menina que fez o desenho. A Menina não responde. Talvez mais nervosa do que queria mostrar, a Professora insiste. Há na sala os risos cruéis e os murmúrios de troça que sempre aparecem em ocasiões destas. A Menina está de pé, muito séria, um pouco trémula. E responde, por fim: "pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu"

(De "A Neve Preta", de José Saramago, 1922 -)


sábado, dezembro 06, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 7


"Ao descer a pequena encosta que leva à aldeia, pairava um silêncio profundo, mas ouviu de súbito o repique dos sinos e o eco prolongado repetiu-se pelas quebradas da serra, como aguda e estridente guizalheira que se fosse reflectindo de monte em monte. Mais longe, tocou o campanário de outra igreja, e de outra ainda mais além, até que por toda a serra ressoou uma melodia fina e brincada de caixa de música. Em cada aldeia chamavam os fieis à adoração da Natividade, que na grande noite festiva se celebrava na missa do Galo.

Na véspera caíra um pesado nevão. A serra, os campos em redor, as casas e as árvores, tudo ficara sepulto no espesso manto branco, que enchia a noite de reflexos - radiação espectral, fantasmagórica, alvíssima e encantada na sua claridade irreal de cenário de mágica.
(...) Na noite de consoada, abancava toda a família em volta da mesa, com a grande toalha de linho dos dias de festa e o lume a arder nas velhas pedras do lar. O candeeiro de latão reluzia de areado. À cabeceira sentara-se o avô, velho bonito, de barba e cabelos brancos, o rosto rosado e os lábios ainda frescos. A mãe trouxera a tradicional pratada de bacalhau cozido com batatas e couves, cebolas e rodelas de ovo, que vinha como sempre apetitosa e fumegante. Uma felicidade contida unia-os em volta daquela mesa apertando-lhes os corações numa sensação de indizível ventura"

(De "Pedro - Romance dum Vagabundo", de Manuel Mendes, 1906-1969)


sexta-feira, dezembro 05, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 6


"A senhora Tung chegava dois dias antes da consoada. Costumava vê-la logo de manhã, com a irmã jardineira, no pátio maior, a admirar as laranjeiras anãs nos vasos de loiça. Via-a casualmente a contemplar, embevecida, o presépio do convento. Encontrava-a por fim à mesa.
A senhora Tung viajava todos os anos da Formosa para Macau, na época do Natal, a fim de festejar o nascimento de Cristo na companhia da sua primogénita, a irmã Cen-Mou.
(...) O quarto cheirava fortemente a incenso. Em cima da cómoda, entre flores, lá estava o Menino Jesus, de cabaia de seda encarnada, sapatinhos de veludo preto, feições chinesas. Depois, timidamente, a senhora Tung abria a gaveta... e surgia a deusa.
O Menino Jesus era de marfim. A Deusa da Fecundidade era de oiro. O Menino, de pé, de um palmo de altura, trajando ricamente. A deusa, sentada, pequenina, nua.
Os olhos da senhora Tung atentavam nos meus, como se à procura de compreensão, mas as suas palavras prontas (a deter as minhas?) eram de autocensura. Não, não devia fazer aquilo. A filha asseverava que o Menino Jesus entristecia, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. E quem sabia mais do que a filha?
(...) Eu sempre me apetecia dizer-lhe que estivesse sossegada, que de certeza o Menino Jesus não havia de entristecer, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. Mas nunca lho disse nos três anos que passei o Natal com ela".

(De "A China Fica ao Lado - O Natal Chinês", de Maria Ondina Braga, 1932-2003)


quinta-feira, dezembro 04, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 5


"Não havia mentido a grande cintilação das estrelas na noite de Natal.
A manhã do dia seguinte correspondeu ao augúrio meteorológico, rompendo pura e desenevoada, com um céu azul sem manchas e um sol de fundir os gelos dos montes e os gelos da velhice.
O frio intenso convidava a sair, e desde pela manhã aldeões de ambos os sexos, de camisas lavadas e roupas domingueiras, atravessavam os campos, saltavam sebes e cancelos, desembocavam das azinhagas e quelhas na direcção da igreja matriz, onde se deviam celebrar as festas da Natividade.
Era dia-santo entre os que mais o são; e os dias santos na aldeia têm uma feição solene e festiva, que mal avaliamos nós, os que passamos a vida nos apertados horizontes das cidades, fantasiando o campo por meia dúzia de pardais, que chilram ruidosamente nas copas das enfezadas árvores das nossas praças e jardins".

(De A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis, 1839 - 1871)


quarta-feira, dezembro 03, 2008

 

Escolas: Os Três Pês do Protesto


O principal motivo que faz parar as escolas, hoje, por todo o país - a avaliação do desempenho dos professores -, é um problema de ordem prático; uma questão de natureza profissional; e uma batalha de âmbito politico.
O problema prático pode resolver-se na busca da sua exequibilidade; a questão profissional pode atenuar-se com uma nova reflexão sobre as exigências específicas deste serviço público; e a batalha política pode (e deve) recentrar-se numa ideia de Escola e de Educação.
É coisa pouca, afinal, este processo de avaliação do diferendo.

 

O Natal da Minha Biblioteca - 4


"Nasceu numa manhã clara de sol e perfume.
Seus olhos eram duas estrelas mansas pousadas no dia, a língua uma carícia de ternura e humidade.
Quando saltava na relva, ao lado das crianças, tinha-se a impressão de que o mundo recomeçava e ainda não se sabia nada das histórias tristes dos homens.
Um dia o menino disse:
- Como vamos chamar ao memé?
E a mãe sugeriu: "Flor".
E desde essa hora o cordeirinho foi mais do que um cordeiro a brincar na relva do jardim, tinha consigo um nome e toda essa solenidade de que os nomes, mesmo os mais vulgares, nos revestem.
"Flor" cresceu devagar. Sem projectos para os dias, sem horas apressadas, sem rancor a ninguém: abelhas e sol, seus companheiros.
Olhava-se para ele, no pequeno quadrado de relva e quase se imaginava que o mundo era uma tela imensa que Chagall pintara para nos diluir a tristeza e a solidão.
Quando Jesus nasceu em Belém, um homem veio e levou o cordeirinho.
Tristemente, a sua voz era, na noite, um grito desesperado de espanto e inaceitação.
Os meninos choraram seu primeiro grande desgosto e, em vão, tentam perceber esse meato que "Flor" deixou, a sangrar, nos seus dias.
Em Belém, o Menino Jesus também não entendeu.
E, na terra inteira, outros meninos nunca entenderão porque se matam cordeirinhos que nasceram para saltar, crescer, viver, livres e claros, na relva verde do Mundo. Ninguém entende.
Mas espera-se, no princípio de cada ano, que esse milagre - o do entendimento discreto das coisas simples - aconteça no coração dos Homens.
E espera-se, confiadamente espera-se que, no Mundo inteiro, os Homens suspendam a matança dos cordeiros de Belém.
Na relva verde de um jardim sem muros, "Flor" é o sinal, o esboço rápido, para esta imensa esperança
".


(De "Crónicas", de Maria Rosa Colaço, 1935 - 2004)


terça-feira, dezembro 02, 2008

 

Amália Rodriges


Tive a honra de ser convidado para a antestreia, ontem, em Braga, do filme "Amália", que trata da vida e obra da fadista portuguesa Amália Rodrigues, uma co-produção VC Filmes/RTP que estará nas salas ainda este mês.
O realizador é Carlos Coelho da Silva, que fez já "O Crime do Padre Amaro".
Ficou-me a impressão de que esta obra cinematográfica está muito abaixo do mito criado ao redor da fadista que foi, de algum modo, uma bandeira nacional e teve honras de sepultura no Panteão.
Ao ver "Amália", não pude deixar de fazer uma comparação com a peça de cinema análoga sobre Edith Piaf, que foi sua contemporânea e também rainha dos palcos da República Francesa.
Acho que o "Amália" é pobre, está ao nível do nosso Portugal pequenino de sempre e não destoa da deprimente crise de agora. Não está ali, de modo algum, a "musa mais popular do século" português, como a definiu Eduardo Lourenço em crónica brilhante inserta na revista Visão de 2 de Novembro de 2000 que conservo no meu arquivo.

 

O Natal da Minha Biblioteca -3


"Corria a noite de 24 de Dezembro, e dez horas acabavam de soar na freguesia de uma aldeia da província do Minho.

Era uma dessas noites como as produz Dezembro nas províncias do norte de Portugal; serena, mas fria de regelar: a geada caía a flocos em abundância.
(...) Entre nós, gente da corte, dez horas é apenas o começo da noite: é a hora de dar entrada num baile, é a hora em que um peralta vai para o teatro; é a hora em que se faz a abertura de um sarau, segundo as prescrições do código do bom-tom; é, enfim, a hora destinada, nos ritos da tafularia, para se começar tudo o que respeita ao mundo elegante, depois que o Sol deixa do nos alumiar. Mas, no campo, dez horas é uma hora adiantada: é a hora em que um honrado e positivo lavrador tem já dormido o seu sono, e muito bem estirado; porque os habitantes do campo como lapónios e pouco ilustrados que são - coitados! - preferem a luz de um belo sol, que lhes alumie e lhes dê vigor e energia, à luz artificial de alguns resplandecentes lustres de gás; e por isso se deitam ao anoitecer, e erguem-se com a aurora, gozando do inexplicável espectáculo do acordar da natureza. São gostos.
(...) No campo, como ia-mos dizendo, dez horas, que são horas de tudo jazer já adormecido, nessa noite, porém, parecia ter excepção, a atender bem na nossa aldeia, por cujas fisgas das portas e janelas de algumas habitações, bruxuleavam luzes, como pirilampos fulgurando num brejo, ouvindo-se, interrompido e intermitente de vez em quando, o roído confuso de um vozear alegre, como cantares, ao que parece, de gente que folgava.
E folgava, sim; porque esta era uma das noites de excepção por excelência para aquelas boas gentes. Esta era a noite de 24 de Dezembro, era véspera do dia de Natal, em que tudo na província folga, risonha, tange, canta, come e bebe, já se sabe, devotamente, depois de ter ido ouvir a missa do galo".

(De "A Noite de Natal", de José Maria de Andrade Ferreira, 1823 - 1875)


segunda-feira, dezembro 01, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 2


"... Ajoelhado no terraço Gaspar olhava o céu da noite.
Olhava a alta e vasta abóbada nocturna, escura e luminosa, que simultâneamente mostrava e escondia.
E disse:
- Senhor, como estais longe e oculto e presente!
Oiço apenas o ressoar do teu silêncio que avança para mim e a minha vida apenas toca a franja límpida da tua ausência. Fito em meu redor a solenidade das coisas como quem tenta decifrar uma escrita difícil. Mas és tu que me lês e me conheces. faz que nada do meu ser se esconda. Chama à tua claridade a totalidade do meu ser para que o meu pensamento se torne transparente e possa escutar a palavra que desde sempre me dizes.
*
Primeiro pareceu a Gaspar que a estrela era uma palavra, uma palavra de repente dita na muda atenção do céu.
Mas depois o seu olhar habituou-se ao novo brilho e ele viu que era uma estrela, uma nova estrela, semelhante às outras, mas um pouco mais próxima e mais clara e que, muito devagar, deslizava para o Ocidente.
E foi para seguir essa estrela que Gaspar abandonou o seu palácio.
*
Nessa noite, depois da Lua ter desaparecido atrás das montanhas, Melchior subiu ao terraço e viu que havia no céu, a Oriente, uma nova estrela.
A cidade dormia, escura e silenciosa, enrolada em ruelas e confusas escadas. Na grande avenida dos templos já ninguém caminhava.
E sobre o mundo do sono, sobre a sombra intrincada dos sonhos onde os homens se perdiam tacteando, como num labirinto espesso, húmido e movediço, a estrela acendia, jovem, trémula e deslumbrada, a sua alegria.
E Melchior deixou o palácio nessa noite.
*
A estrela ergueu-se muito devagar sobre o céu, a Oriente. O seu movimento era quase imperceptível. Parecia estar muito perto da terra. Deslizava em silêncio, sem que nem uma folha se agitasse. Vinha desde sempre. Mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria, a substância imortal da alegria.
E Baltasar reconheceu-a logo, porque ela não podia ser de outra maneira".

(De "Os Três Reis do Oriente", de Sofia de Mello Breyner Andresen, 1919 - 2004 )

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