domingo, março 16, 2008

 

Em Timor em Tempos de Páscoa





eu vi
uns braços de cruz
que abraçavam

eu vi
uns olhos de luz
que perguntavam

e um peito
feito escudo

eu vi
um profeta no terreno
bem sereno
e fiquei mudo.

fernando castro martins


domingo, março 02, 2008

 

O Oito de Márcia


A traço leve, ao longe, desenha-se um vulto
que logo se acusa de feminino e familiar.
Aproxima-se e cresce: é ela, é Márcia do Rosário.
Não vem por mim, mas, desta vez, o caminho é de ambos.
Dá-me os bons dias, de voz firme e doce, havendo
ainda uns sete metros a separar-nos.
Márcia
é assim: prática e produtiva. Se se
vai demorar num minuto de conversa, a saudação
dada é já tempo ganho.

- Olá Márcia - respondo e pergunto - onde vais
assim plantada de tantas e tão lindas flores?
A resposta será para mim óbvia, pelo que
só pergunto para falar e ouvir.
- Vou -las na campa do meu homem que
faz hoje sete meses e oito dias que se foi
e não me convenço.
Já lá estive a lavar a pedra
com os miúdos, agora vou assear.

Márcia acumula agora a sua missão de mãe
com a do outro progenitor, pois uma cirrose levou-lhe
o marido pela meia idade - maldita doença - e ela, desde
o primeiro dia, carrega energias
ao pé dele a oferecer-lhe flores.
Flores de florista, bem pagas mas sempre
belas, garridas, muitas; e sente-se melhor assim.
Talvez a prática vá permanecer por muito e longo
tempo, pois Márcia é uma perfeccionista e nunca seguiu
o caminho das menores canseiras quando estas se
apresentam em prejuízo do seu sentido das coisas.

O falecido era afectuoso e nunca
faltou com nada à família.
O seu ponto fraco era o de beber para lá
da conta e desta forma atacar o calorão que apanhava
em cima dos andaimes de onde alevantava as casas
do chão ao mesmo tempo que se lhe desmoronavam
injustiças em cima do corpo e da alma.

Manuel foi um sofredor no trabalho
e na doença, mas vive finalmente em paz na vida
que continua da sua mulher e dos seus filhos.

Agora, a viúva, que sempre foi uma rectaguarda
eficiente, saltou para a frente de tudo e tudo dirige com
inesgotável energia que a necessidade dá vigor
e a intuição feminina é uma força da natureza.

Às cinco da manhã Márcia está de pé. Entra
às seis na fábrica têxtil e é preciso deixar preparadas
as roupas e os lanches dos filhos que hão-de
ir à escola mais tarde com o empurrãozinho terno
da avó e adiantar o almoço que há-de apurar
e consumir com os seus pelas quinze horas.

Coordena, entretanto, o martelar incessante
de um corredor de teares, uma carga máxima
de trabalho por um salário mínimo.

Mas é com emoção e dignidade que assiste
no parto, em cada dia, aquelas procriadoras máquinas
e acolhe o fruto dos seus ventres, que são belos
tecidos, pois sendo ali, de algum modo, uma espécie
de parteira competente, é com o seu coração de mulher
e de mãe que consegue conciliar esses opostos sentimentos
que são um grande sofrimento e um íntimo júbilo.

Foi neste profundo viver e sentir que Márcia
do Rosário se fez notar pela positiva entre as suas
colegas que não pararam até fazerem
dela a delegada sindical da secção.

Já sofreu também com isso, mas conforta-a o ter
ocasião de fazer respeitar os direitos legais e, mais
ainda, de fazer valer a dignidade de cada
companheira e de cada companheiro.

É uma personalidade forte, esta mulher.

Márcia ocupa muito do restante tempo com os seus
filhos. Sabe da importância de os acompanhar nos estudos,
de visitar a escola, de dialogar com os professores.

É uma mãe presente e que presente têm os seus filhos na sua mãe.

Por necessidade, mas também por escolha, ensinou
já o mais velhito a participar no arranjo
da casa e a fazer umas coisas na cozinha.

E um dia destes teve uma comovedora
recompensa: ao chegar a casa, da fábrica, o seu
primogénito, de treze anos, esperava-a, com um sorriso
que não lhe cabia no rosto, e com estas palavras:

- É para ti, mãe.

Era um bolo, grande, bem cozido; e o calendário
registava 8 de Março, dia da Mulher.

Recupero aqui este meu texto, publicado no Jornal Voz do Trabalho de Março/Abril de 2002.

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