sábado, dezembro 29, 2007

 

Dia da Mulher


Só não fecharam a boca daquele povo. A fábrica encerrou há dez anos, a escola há dois, agora o centro de saúde e a maternidade da vila; e nem o padre, que pastoreia cinco rebanhos em igual número de aldeias, dispõe já do tempo necessário para enxaguar as lágrimas a tão desoladas almas.

É certo que são almas poderosas e lágrimas é uma forma de dizer. Que não é choradinho nenhum meter toda a freguesia em camionetas e demandar Lisboa para confrontar o ministro “cego, surdo e mudo” e dizer-lhe, em coro bem sonoro, que matar assim aquela terra não dá saúde a ninguém.

A Carolina é a líder do grupo. Já contou os setenta anos e, por ter sido há muitas décadas a parteira do seu lugar e tendo feito nascer “sem avarias” vários daqueles manifestantes, tem uma autoridade quase maternal para testemunhar que os tempos são outros e que já não seria razoável voltar a aquecer água na sua lareira para os tão delicados trabalhos de aparar meninas e meninos e substituir a maternidade em vésperas de encerrar.

Carolina estudou a lição do que há-de dizer ao ministro e vai desmontar essa coisa da “racionalização de recursos”, das “mutações demográficas”, e pode ser que até tenha oportunidade de acrescentar que essas “tolas” medidas podem até “acentuar as assimetrias” entre as regiões mais e menos favorecidas. "Que isso de usar palavras caras para bater nos pobres também tem que se lhe diga e a gente vai-lho dizer” – diz, altiva e doce a nossa Carolina.

Esta excelente senhora é uma versão, moderna e moderada, da também minhota Maria da Fonte e é igualmente determinada a apontar a desfaçatez de quem, em Lisboa, julga que o restante país é “paisagem e povo parvo”. É assim Carolina, eloquente, poeta, resoluta. Uma mulher que luta. Preparada, ponderosa e viva. Com as rugas a jorrarem-lhe caudais de maturidade. Com uma quarta classe muito revista e aumentada no seu laboratório da vida. Uma autodidacta. Uma condutora de gente. Respeitada, Seguida. Coadjuvada por muitos.

Um dia, o ministro em campanha por aquelas terras, roubou-lhe um beijo. Hoje é ela que está na sua campanha. Mas não vai retribuir com ternura aparente. Vai dizer àquele eminente senhor, hoje, dia da mulher por obra e graça de muito esforço em prol da justiça, que a “a cortar, a cortar, é fácil governar”.

8 de Março de 2007


sexta-feira, dezembro 28, 2007

 

Rio das Flores

Estes dias mais vagos de Natal permitiram-me desfrutar do Rio das Flores, de Miguel Sousa Tavares, e, devo dizer, foi para mim uma leitura muito saborosa e instrutiva.
Este romance tem a eficiência de nos recordar a vergonhosa história da primeira metade do século XX, em Portugal e na Europa, também no Brasil, através de um enredo que se apodera de nós da primeira até à última das suas páginas.
Mas fiquei com a impressão de que esta obra podia ser menos extensa - penso o mesmo de outras obras do género, cujos autores perece quererem fazê-las render - umas quatrocentas páginas, bem expurgadas de gorduras, seriam, a meu ver, suficientes.
Eu não digo isto de forma leviana, já que encontrei ali pelo meio certos bocados de narrativa que nem me pareceram estar ao melhor nível deste excelente escritor.
Acho que os melhores não deviam trabalhar tanto. Mas, globalmente, Rio das Flores é um muito bom livro porque nos serve da mais relevante e rigorosa história dos povos a partir da levíssima e descontraída história de um romance.


domingo, dezembro 23, 2007

 

Fome de Natal


É Natal; e proponho esta ideia,
Que me impele, tão grave como luz:
Façamos uma greve a esta ceia,
Compartilhando a fome de Jesus...

Com fome de Sudão e de Coreia,
Sem ideia do que sejam perus;
Interpelando cada mesa cheia,
Que se fecha com tudo o que produz...

Que o Natal é "vida em abundância";
E esta frase não é de circunstância;
É antes um programa e um destino...

Que Jesus não gosta de arrogância;
E fez-se nosso irmão e é Divino
E assim nos liberta o Deus-Menino.

Fernando Castro Martins


sábado, dezembro 22, 2007

 

Conto de Natal


Monsenhor Miranda, homem de sete instrumentos eclesiais, titular de uma das mais afreguesadas paróquias da diocese, membro distinto da Cáritas, notável presidente da Vigararia das Migrações e de mais um sem número de responsabilidades na vinha do Senhor, era um homem sem tempo livre. Melhor dizendo, todo o seu tempo era de dádiva e de serviço. E era reconhecido como homem bom e feliz.

Monsenhor gostava de ter sempre as suas janelas abertas e operacionais sobre o mundo, fossem elas as reuniões com o povo, as audiências, as visitas, a participação em eventos. E gostava, particularmente, da janela do telejornal das vinte, por onde espreitava durante o jantar, e por onde via as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens, mais estas que aquelas, que a miséria alheia vende melhor que a felicidade, e o infortúnio de muitos dá muito dinheiro a poucos muito afortunados.

Uma noite, ao carregar no botão do aparelho televisivo, monsenhor nem queria acreditar: a desgraça, desta vez, era ali à sua porta.

Estupefacto e interessado, o bom do padre logo recalcou o humano ressentimento de não ter sido o primeiro a saber da realidade caseira e, agasalhando-se, saiu de imediato à rua.

Ao chegar ao local da notícia - o coreto da freguesia onde, uma vez por ano, actuavam as melhores bandas de música e o mais alegre folclore em honra do padroeiro - ficou, por momentos, aterrado e mudo, confirmando o anunciado quadro surrealista: cinco farrapos de gente sobreviviam ali, ébrios, sonolentos e dispersos pelo chão entre farrapos têxteis, garrafas, muitas garrafas vazias, latas, algumas latas que acolheram conservas; uma esterqueira e um cheiro nauseabundo, capazes de fazer gelar o mais distraído cristão.

Monsenhor, impassível, abeirou-se daquelas criaturas que lhe disseram ser imigrantes ilegais e desempregados e que bebiam para anestesiar a alma. Tinham vindo do Oriente mas não fizesse cerimónia, pois não eram os Reis Magos: tinham deixado mulheres e filhos à espera que estes lhes levassem dias melhores; que queriam trabalhar; que já antes tinham conseguido algum trabalho com parca remuneração; que temiam a denúncia da sua permanência irregular no país.

Padre Miranda, sempre prático e objectivo no exercício da boa caridade, logo tirou do bolso a oferta de lhes pagar a viagem de regresso à terra, para junto das suas famílias, além de prometer alimentá-los e vesti-los para que voltassem asseados e dignos. Mas estes, já muito doentes do seu querer, não puderam assumir o insucesso dos seus empreendimentos e aquele não pôde violar as leis da imigração, ajudando-os de outra maneira.

Monsenhor teve de se retirar dali para pensar melhor no que fazer, resolvendo recolher-se na sua esplêndida igreja barroca, que havia terminado de restaurar com todo o rigor e respeito pelos autores originais e com o precioso apoio financeiro e técnico do Instituto Português do Património Cultural. Ele sempre ali se achou pequenino diante da imensurável grandeza de Deus e sempre louvou o Criador por tamanha sensibilidade dos mestres artistas e por tão transcendente e sublime arte sacra. Porém, nesse dia, monsenhor estava confuso e atordoado: é que, no centro da sua paróquia, estavam em decadência espécimes da arte moldada pelas mãos do próprio Deus com o barro simbólico do Génesis e, para os recuperar, não havia nenhum competente instituto do Estado e, na verdade, nem ele sabia muito bem o que fazer.


quarta-feira, dezembro 19, 2007

 

O Natal da Micas Tronchuda

É verdade: A Micas Tronchuda e o Zé Afinador têm hoje, ao redor do seu bacalhau com batatas, nada menos que dez doutores. Parece mesmo um milagre de Natal, mas eu inclino-me mais para considerar que houve ali, sim, um grande milagre de trabalho.
Maria e José encontraram-se pela primeira vez aí pelos doze anos, quando labutavam já, na fábrica têxtil, umas quarenta e oito horas por semana, levando, em cada sábado, oitenta e quatro escudos para casa.
Casaram aos vinte, ele mais, ela menos uns meses. Tiveram cinco filhos - três raparigas e dois rapazes - e obstinaram-se em que estes fossem mais felizes que eles: puseram-nos todos a estudar, uns para lá do trabalho operário, outros biscatando por algum nas férias e nos feriados para, em parte, se auto financiarem.
Hoje, contando com os seus filhos, filhas, namorados, genros e noras, estão ali, na mesa natalícia, dez jovens licenciados: uns que contam com uns trabalhinhos ocasionais a recibos verdes; outros laborando por um salariozinho em caixas de supermercado; outros que estão ocupados a trabalhar no seus estágios sem remuneração e sem futuro (absolutamente imunes ao materialismo!); outros ainda que se encontram livres como passarinhos, no desemprego, sem subsídio e com uns lindos horizontes. . .
José e Maria estão de tal modo embevecidos diante de tão letrada mesa de Natal que nem vêem o grande presente que ali têm para desembrulhar.


domingo, dezembro 16, 2007

 

Um Estúpido Conto de Natal

É meia-noite e Josué procura agora aconchegar-se a Marisa porque sente muito frio naquele piso-cama de cimento, de um recanto coberto da central de camionagem de Braga, que desde há muito os serve como hospedaria casual.
Naqueles mesmíssimos e sebosos trapos, que fazem de almofadas e de cobertores, dormem, também, esporádica e alternadamente, outros crónicos da pinga e das drogas e das suas consequências: a sida, as hepatites, a tuberculose.
Hoje ficaram ali somente o Josué e a Marisa, que não têm qualquer laço de conjugalidade, unidos pela mútua apatia. Ela tem sida, que se sabe; e ele tem uma garrafa, que se vê.
Marisa não recusa a proximidade de Josué, e segreda-lhe:
- Olha, tenho aqui dentro um filho, só meu - Deus bem sabe como foi - e gostava que ele nascesse nesta noite de Natal. Se vier perfeitinho, tu podias ser o pai. Aceitas?


sexta-feira, dezembro 14, 2007

 

de uma só linha - 16

Há pessoas tão indolentes que só nos fazem falta quando estão ao pé de nós.


quinta-feira, dezembro 06, 2007

 

Tons de Morte

Batem as oito horas sobre este colorido em tons de morte, porque é Outono; e as árvores, endoidecidas, despem-se às ordens do frio e estendem-me um tapete, julgando que sou rei.
Eu caminho por ali, rua dos Barbosas, por onde caminha também o rio Este.
O renque das árvores, nossas amigas, separa a rua do rio, habitando o centro do passeio e um par de namorados separa-se a cada onze passos, como quem brinca, contornando as espécies arbóreas alternadas, ora um lódão, ora um carvalho-americano, que estão ali, caladas, imponentes e simetricamente como se os passeios fossem feitos para elas, que não passeiam, em prejuízo dos passeantes.
Mas são bem comportadas estas senhoras que mudam de penteado duas vezes ao ano e ostentam um urbaníssimo porte, convivendo numa conjugalidade perfeita com aquele harmonioso empedrado de calcário e basalto e com os colares de granito que as circundam na base. Também as suas raízes, mesmo escondidas, usam de toda a civilidade aprumada e não beliscam nem um cubinho daquele gracioso mosaico geológico.
Porém, o que hoje mais me comove é aquela tela vegetal que piso ainda fresca, que é manhã de domingo e ninguém mais se levantou ainda.
Porque as folhas do carvalho-americano morrem em castanhos vários e as do lódão em diversos amarelos, está ali, também, em tons alternantes, um tapete folhoso digno de uma qualquer procissão da Imaculada que se celebra neste oito de Dezembro.

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