domingo, outubro 01, 2006

 

CAMINHADOR


Quer se cruzasse connosco na rua quer passasse por baixo da nossa varanda, era um regalo de alma contemplar aquela figura caminhadora a que vou chamar Miguel, sempre de jornal ou livro aberto sob os olhos, estes também levemente andantes mas em sentido transversal.

Os pés de Miguel eram como que uma teia de tear, sempre longitudinais, e os seus olhos uma trama, sendo que o conjunto do quadro resultava num sublime tecido de seda exposto como bandeira ao vento.

A Miguel quase não era possível perguntar o que andas a ler. É que ele lia sempre a andar.

Miguel, meia-idade bem conservada, nem alto nem baixo, de cabeça meio calva e meio cãs, era uma simpática figura da cidade. Não se sabia a sua profissão e o seu ar enigmático situava-se entre o intelectual interessado e o autodidacta laborioso.

Como se não demorava nos cumprimentos, de resto sempre dados com imensa cortesia, todos se ficavam a interrogar sobre aquela tão eminente personagem que parecia obstinada no aparente paradoxo de apelar às palavras com o seu mais circunspecto silêncio.

Miguel, lia e caminhava. Era como se falasse.

É de muito bom-tom a gente ler, meditar e pôr-se a caminho. Miguel, ao ler, ia já a caminho e deixava todos a meditar.

Já há muito que se não vê passar Miguel e todos dão agora conta da falta que ele faz. Este seu virar de página trouxe ao bairro o desassossego do desencontro entre o caminhador de sempre e quem, passivamente, sempre se alimentou dos seus passos.

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