sábado, novembro 18, 2006

 

UM MORTO CÍNICO

Morreu o Jaime!
A notícia foi dada no café ao acaso - olha, sabes quem morreu? - e, daí a nada, estava meia aldeia em rebuliço.
Era de admirar, pois o Jaime, um solitário da terra que geralmente não despertava qualquer interesse, provocava, agora, aquele movimento inusitado.
Na escassez de pormenores acerca do passamento daquela figura do meio; logo ali se disse que já era de esperar este desfecho, que a personagem andava fracota nos últimos dias, que o seu fim só poderia ser, literalmente, numa valeta.
Mas, como é de uso na aldeia, logo se mexeram solidariedades, foi-se ao hospital em demanda do corpo - onde podia estar ele se não na morgue? -, foi-se dizer ao senhor abade, e este logo ali se comprometeu a "fazer" uma cerimónia de enterro bonita pois "os últimos são os primeiros".
Dado que o Jaime vivera sozinho e nunca tinha feito mal a um insecto, havia ali uma inestimável oportunidade para boas acções sem pesados sacrifícios, e, em boa verdade, não faltaram também benfeitores no plano imaterial que já apregoavam as sublimes qualidades do perecido, a modos de lhe prepararem, se não um altar, ao menos um lugar muito honroso na memória do colectivo da freguesia.
Por este motivo se regista a amarga desilusão observada naquele abnegado povo, quando, à noite, o Jaime de sempre, passou, no costumeiro horário, entre o café e a igreja, por entre beatas e bebedores.
_ Ó safado, então tu não morreste? Ainda bem. Ainda bem.
E foi mesmo o falso morto quem anunciou ter sabido na freguesia vizinha que, aí sim, tinha de facto falecido um tal Jorge, nas circunstâncias já conhecidas.
Mas o povo desde há muito que vinha a matar o Jaime nas suas mentes e até houve quem o quisesse culpar pelo embuste, apresentando duas excelentes razões: a primeira porque ele não tinha nada que levar uma vida coincidente com a do morto verdadeiro quando até ostentava um nome parecido; e a segunda, porque era uma imensa desfaçatez que ele aparecesse assim tão bem disposto e sereno quando todos estavam consternados e pesarosos com a sua desgraça.

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