sábado, dezembro 22, 2007

 

Conto de Natal


Monsenhor Miranda, homem de sete instrumentos eclesiais, titular de uma das mais afreguesadas paróquias da diocese, membro distinto da Cáritas, notável presidente da Vigararia das Migrações e de mais um sem número de responsabilidades na vinha do Senhor, era um homem sem tempo livre. Melhor dizendo, todo o seu tempo era de dádiva e de serviço. E era reconhecido como homem bom e feliz.

Monsenhor gostava de ter sempre as suas janelas abertas e operacionais sobre o mundo, fossem elas as reuniões com o povo, as audiências, as visitas, a participação em eventos. E gostava, particularmente, da janela do telejornal das vinte, por onde espreitava durante o jantar, e por onde via as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens, mais estas que aquelas, que a miséria alheia vende melhor que a felicidade, e o infortúnio de muitos dá muito dinheiro a poucos muito afortunados.

Uma noite, ao carregar no botão do aparelho televisivo, monsenhor nem queria acreditar: a desgraça, desta vez, era ali à sua porta.

Estupefacto e interessado, o bom do padre logo recalcou o humano ressentimento de não ter sido o primeiro a saber da realidade caseira e, agasalhando-se, saiu de imediato à rua.

Ao chegar ao local da notícia - o coreto da freguesia onde, uma vez por ano, actuavam as melhores bandas de música e o mais alegre folclore em honra do padroeiro - ficou, por momentos, aterrado e mudo, confirmando o anunciado quadro surrealista: cinco farrapos de gente sobreviviam ali, ébrios, sonolentos e dispersos pelo chão entre farrapos têxteis, garrafas, muitas garrafas vazias, latas, algumas latas que acolheram conservas; uma esterqueira e um cheiro nauseabundo, capazes de fazer gelar o mais distraído cristão.

Monsenhor, impassível, abeirou-se daquelas criaturas que lhe disseram ser imigrantes ilegais e desempregados e que bebiam para anestesiar a alma. Tinham vindo do Oriente mas não fizesse cerimónia, pois não eram os Reis Magos: tinham deixado mulheres e filhos à espera que estes lhes levassem dias melhores; que queriam trabalhar; que já antes tinham conseguido algum trabalho com parca remuneração; que temiam a denúncia da sua permanência irregular no país.

Padre Miranda, sempre prático e objectivo no exercício da boa caridade, logo tirou do bolso a oferta de lhes pagar a viagem de regresso à terra, para junto das suas famílias, além de prometer alimentá-los e vesti-los para que voltassem asseados e dignos. Mas estes, já muito doentes do seu querer, não puderam assumir o insucesso dos seus empreendimentos e aquele não pôde violar as leis da imigração, ajudando-os de outra maneira.

Monsenhor teve de se retirar dali para pensar melhor no que fazer, resolvendo recolher-se na sua esplêndida igreja barroca, que havia terminado de restaurar com todo o rigor e respeito pelos autores originais e com o precioso apoio financeiro e técnico do Instituto Português do Património Cultural. Ele sempre ali se achou pequenino diante da imensurável grandeza de Deus e sempre louvou o Criador por tamanha sensibilidade dos mestres artistas e por tão transcendente e sublime arte sacra. Porém, nesse dia, monsenhor estava confuso e atordoado: é que, no centro da sua paróquia, estavam em decadência espécimes da arte moldada pelas mãos do próprio Deus com o barro simbólico do Génesis e, para os recuperar, não havia nenhum competente instituto do Estado e, na verdade, nem ele sabia muito bem o que fazer.

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