sábado, abril 12, 2008

 

- - - - - - - - - Alegoria das Pedras - - - - - - - - -

I
O Coleccionador de Pedras
Fernão Joane levantara-se cedo nessa manhã fresca de Outono, descera as escadas de madeira que lhe rangeram um cumprimento retributivo ao som dos seus passos e achava-se ali, agora, na ruela sem idade do seu modestíssimo bairro, de cócoras, a dialogar, em cúmplices silêncios, acerca das histórias da vida.
-Vês, ambos nos magoámos! – Pensava, como se falasse com o grão de areia que segurava agora entre o polegar e o indicador, diante dos seus olhos, um nadinha brilhantes. Ambos nos magoámos e agora podemos reconciliar-nos. Sempre que eu te pisava tu ferias-me os pés. Lembras-te? Estes são factos verídicos da nossa relação. Do nosso intercâmbio. Não podes negar, também, que sempre pudeste observar, sem constrangimentos, os segredos da minha vida: amores, desencontros, fraquezas; às vezes algum privado júbilo. É, ou não é verdade?

E fora assim, nesta suplicante ternura, que Joane acabara por recolher cinquenta e uma minúsculas pedrinhas, de tons e consistências diversos, cada qual estivera ali a contribuir, em exclusivo, para o mosaico multifacetado do caminho da sua vida; e as depositara no seu alvo lenço da mão, agora com as pontas unidas em laços leves.

E deste modo recolhera também o próprio Fernão Joane à sua desprovida moradia, com o desígnio de ali instalar primorosamente a sua novel colecção; tendo deixado esta patenteada, para todo o sempre, sobre a colcha em tons de ouro e vinho, uma antiquíssima colcha de família que até então só saíra da arca de carvalho uma vez por ano para ornar a sacada à passagem da procissão do Senhor dos Santos Passos.

E Joane tivera sempre uma aguda percepção de que a vida de cada um é também uma singular procissão dos passos, pelo que, ora lavava as suas preciosas pedrarias com incontidas lágrimas de opostos sentimentos, ora as polia com os seus dedos dançantes, maníacos e felizes.

Podem, pois, entrar neste pequenino mundo. Esta é a esmeralda, este o rubi, aqui temos a pepita, eis a safira…
II
A Selecção das Pedras
O convívio diário com os seus pequenos minerais fez desabrochar em Fernão Joane um amor quase paternal à sua profícua colecção e, a cada manhã que acordava, de novo, para mais uma porção da vida, decidia ficar a conversar, demoradamente, com um número determinado das suas pedras encantadoras.

A uma conversinha superficial e passageira com todas elas, condicionada pelos limites temporais de cada amanhecer, Fernão resolvia deter-se selectivamente em profundas abordagens metafísicas com apenas uma parte dos seus preciosíssimos exemplares geológicos, justificando-se, se interpelado acerca dos seus métodos, que já ancestralmente se sentenciava o magistral aforismo de que quem tudo quer tudo perde; e acrescentava que, adicionando a sua experiência de vida a essa máxima, acabava por abordar o todo tirando partido do seu bom critério e do seu rigoroso agendamento.

Claro que diversos tipos de ciúme iam fazendo o seu caminho entre as belas jóias da coroa preteridas em cada visita, sempre afectiva, de Fernão Joane e havia também outros géneros de sentimento, como o particular sentimento do sólido grão de granito que, sendo do género masculino, ofereceu-se um dia, embora sem sucesso, para uma espécie de liderança do conjunto dos seus pares. E registe-se que a maioria destes – que o uso convencional da língua portuguesa me constrange a tratar no masculino – eram na verdade elas; e repare-se, de novo, na transcendência e nas formas da esmeralda…

Prosseguindo a nossa exposição, dizia eu, então, que o granito, ostentando as suas másculas qualidades e numa bruta batalha pelo poder, quis impor-se como representante permanente do colectivo junto do dono e senhor de todas as pedrarias.

Alegava, aquela rochosa partícula de escassíssimo brilho, que só desse modo o seu senhor poderia abordar todos e todas na sua pessoa de competente quadro intermédio, ainda que, a partir de então, não pudesse mais o coleccionador desfrutar dos prazeres visuais e sensitivos que lhe eram oferecidos, como bênçãos do céu, pelo conjunto daqueles luminosos corpos.

E detendo-me um pouco mais neste capítulo, peço que reparem na granítica estupidez de quem pensa que o gosto, a ponderação e a reflexão podem ser delegados em terceiros em gravíssimo preterimento da dignidade e da integridade de cada ser. Não: cada qual deve afirmar-se na sua individualidade, e dispor de recolhimento para as suas interiorizações e de areópagos para as suas exposições.
III
A Análise das Pedras
Felizmente, Joane, em elementar respeito pela sua pessoa e em magnificente tributo à Humanidade, nunca fechou portas nem janelas a nenhum horizonte de esplendorosas excelências e, dizia sempre: prefiro a selecção pelo método à escolha pela exclusão.

Assim, em pessoa julgada de gostos simples e previsíveis, embora sabidamente criteriosos, era surpreendente que Fernão Joane estivesse àquela hora na sua saleta-das-pedras-preciosas. Surpreendente até ao medo, também ele petrificante, porquanto não havia como provar, sequer, que fosse mesmo Fernão que ali estava; via-se apenas um vulto vaguíssimamente revelado por uma estranha luz, de uma estranha cor, de estranhos reflexos; e o vulto manuseava uns aparentes discos de vidro, que bem podiam ser óculos, lupas, lunetas; ou até, apenas e só, uma ilusão óptica do lusco-fusco; ou, pior ainda, uma visão do meu nebuloso e alucinante pavor.

Fugi dali cobardemente, geladamente, desesperadamente. E não mais abri a boca, antes por medo, agora por vergonha; até que Fernão me abordou, dias depois, com circunstanciada euforia:

- Sabes - disse – tenho analisado as minhas pedras à contra luz e cheguei à conclusão de que elas já não são pedras mas só e apenas um ponto de partida.
Eu fiquei de boca aberta e ele continuou:
- As minhas pedras têm falado comigo.
E eu fiquei com os cabelos em pé.
E ele acrescentou:
- Acho que elas têm vida.
E eu arrepiei-me todo.
E ele concluiu:
- Tenho a certeza de que as minha pedrinhas têm dinossauros dentro.

-Mas…! – Disse eu aterrado, sem perceber o sentido das minhas próprias palavras: não eram elas somente um ponto de partida?

São! – Disse Joane. Tenho pensado muito a partir da observação minuciosa das minhas pedras: as formas, as cores, os pesos.

- Específicos? …Disse eu, lembrando-me vagamente da linguagem técnica das minhas aulas de físico-química.

-Tudo pode ser observado, ponderado, mensurado; proclamou ele, catedraticamente; continuando:
-As minhas pedras, agora, são um ponto de partida. Foram elas que me disseram tudo o que, acerca delas, eu sei. Foi junto delas, também, que eu aprendi a pensar as outras coisas, embora em ponto pequeno, porque elas são pequeninas. Agora temos de partir pedra a partir de pensamentos grandes. Temos de pensar um bocadinho maior. Estás-me a compreender agora?
As minhas pedrinhas abriram-me os olhos.
Tudo nos pode abrir os olhos.
IV
O Jogo das Pedras
Pedras, é um modo de dizer - diz Fernão Joane, que continua:
- Se estas fossem as propriamente ditas poderiam ser pedras de uma intifada ou pedras de um dominó, umas e outras ávidas de jogo, que só pelo jogo se justificam, só a função faz a coisa.

E Joane, explica melhor:
- Nenhuma pedra é pedra de jogo se não joga; nenhuma pedra é pedra-arma, se não voa. Há, reconheço, pedras passivas, as da calçada: dormentes, indolentes, imanentes; e também pedras agressivas, as renais: dolosas, dolorosas, insidiosas; e ainda as pedras obsessivas, domiciliadas em alguns sapatos: desconfiadas, acauteladas, aquarteladas.

Mas não vou ocupar-me das pedras trivialmente assim chamadas, nem da sua família, nuclear ou alargada, com nome apropriado, aproximado, figurado.

As minhas pedras, conclui Fernão, não foram nunca pedras. Nem sólidas são! Nem líquidas! Nem gasosas! As minhas pedras são sonhos, observações, registos; são relações, actos, escolhas; são caminhos, jornadas, aprendências.

É esta a minha colecção de pedras.
Este é o jogo das pedras.
E estas as palavras.

fernando castro martins

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