segunda-feira, agosto 25, 2008

 

Memórias da Serra


Foi ali pela década de oitenta. Éramos três, eu e os dois irmãos Marques: o Amândio e o José.
Fomos num mini (lembram-se do mini, que era um carro do tamanho de um ovo?). Fomos num mini, dizia, até ao perímetro da serra e o objectivo era percorrer, a partir dali, a pé, o Gerês, a Amarela, o Soajo e a Peneda, numa semana; e conhecer quanto houvesse.
A primeira etapa foi em Leonte. Parámos o mini e logo começou a chover fortemente. Abrigámo-nos ali num telheiro da abandonada casa do antigo guarda florestal. Havia lenha, acendemos uma fogueira e secámos as roupas. Petiscámos conservas. Dormímos ali mesmo.
Pela manhã fomos acordados por um senhor que parecia vir reclamar a sua propriedade. Momentos depois já o tratávamos pelo seu nome e usávamos todo o nosso charme para fazer dele nosso cúmplice. Ele usava a casa do guarda rm ruínas, durante o dia, como apoio ao seu trabalho de vigilância dos garranos selvagens e de outros serviços à serra. De seguida já ele nos convidava a usar a casa principal do rudimentar aglomerado serrano que compreendia ainda outros anexos e um enorme tanque de água corrente. Uma vez ali, logo começámos a cozinhar, com lenha, as batatas e o bacalhau do nosso anfitrião em conjunto com as nossas conservas de sardinhas e lulas, tudo na mesma panela.
Fizemos uma refeição comunitária a quatro, muito saborosa e afectiva, e estava o caminho feito para que o nosso anfitrião se transfigurasse em guia turístico. Visitámos tudo ali à volta sob a sua orientação: espécies vegetais de grande e pequeno porte; ouvímo-lo, mais do que vimos, acerca da diversidade faunística.
Tivemos ali cama na segunda noite: enxergas para os três, sem lençóis nem cobertores, mas riquíssimas em insectos esfomeados e atrevidos.
O nosso guia não dormiu connosco na estalagem romântica. Tinha melhor leito numa aldeia vizinha, na casa de seus pais, pelo que nos despedimos dele para tratarmos de nós próprios.
Pela manhã reparámos que faltava a gasolina no mini. Esta, só deu para o primeiro quilómetro. Mas isso não foi problema: estávamos no alto e para descer não precisávamos de motor. Só em pequenos percursos tivemos de empurrar o nosso excelente veículo, no resto do tempo fomos escorregando, dentro dele, ao longo de sete quilómetros, até à bomba, na vila do Gerês.
Entretanto, tínhamo-nos banhado no rio Homem, lembro-me de que o fizemos totalmente nus, por falta dos convenientes fatos-de-banho. Também recordo termos afogado logo a máquina fotográfica ao primeiro disparo de dentro da água, pelo que não ficou registo de nenhum daqueles inauditos momentos da semana.
Ao segundo dia parámos o mini na barragem de Vilarinho das Furnas com o propósito de só o levantar dali cinco dias depois. Deveríamos caminhar pelas serras fora até à Senhora da Peneda. Confiávamos na perícia escutista e no sentido de orientação do José Marques.
A chuva miudinha e o sol envergonhado iam-se-nos oferecendo interpoladamente.
Investimos pela Amarela, não sem antes contemplarmos as ruínas da aldeia comunitária de Vilarinho que espreitavam da água da barragem que as imergira nos anos de 1970.
A meio da serra, tentámos tirar o nosso cafezinho da italiana de pressão: acendemos umas folhinhas, colocámos nelas a cafeteira mas não saiu café. Acabámos por nos compensar com um gole de aguardente que preveníramos com uma garrafa de três quartos de litro.
Perdemo-nos na serra. Zangámo-nos. Uns queriam seguir em frente; uma voz optava pelo recuo. Sabíamos que para trás havia, se corresse bem, duas horas de caminho. Para a frente era o escuro absoluto.
Venceu, contudo, o impulso da aventura e seguimos em frente. À noitinha já estávamos a dormir debaixo de um espigueiro em Lindoso. Contámos o dinheiro e fomos a uma tasca comer um arroz de tomate e duas doses de bacalhau. Desforrámo-nos da fome de um modo que nem vos podemos contar. Bebemos bem do bom vinho.
Pela manhã caminhámos até à Várzea do Soajo, uma aldeia que ía perder as suas terras de cultivo para a barragem do Lindoso, então em construção. Bebemos um sublime licor caseiro na venda do senhor Alexandre, feito, garantidamente, com uvas americanas. Comprámos um naco de pão duro, de milho, numa humilíssima casa de família, a nosso pedido. Dormímos nas imediações num forno-abrigo de pastores que o senhor Alexandre nos indicou.
De manhã, tentámos atravessar, no vau, o rio Lima. As mochilas, nas costas, pareciam, numa primeira fase, fazer o papel de bóia tornando-nos um pouco mais leves, e assim caminhámos até ao centro do rio. Mas, a dado momento, as mochilas já cheias de água ensopada com as roupas, puxavam-nos para o fundo. Também a corrente lutava connosco e nós com a corrente. Safámo-nos recuando.
Fomos contar a peripécia ao senhor Alexandre e ele avisou-nos de que, do outro lado do rio, era Espanha. Que tivéssemos cuidado porque, vistos ali, podíamos ser acusados de contrabandistas. Ainda não havia União Europeia.
Estávamos já esgotados, com pouca comida, pouco dinheiro, pouco sonho. Ainda tentámos reencontrar o caminho para a Peneda, caminhando mais alguns quilómetros, mas já tínhamos imensas saudades do nosso mini.
Iniciado o regresso, acomodámo-nos para dormir na Amarela, envoltos nos sacos-cama, transidos de medo, embrenhados nas urzes. Choveu nessa noite. Já não tínhamos pilhas nas lanternas. A noite estava preta, húmida e fria.
Tentou cada um ajeitar-se à situação e, daí a pouco, já não sabíamos uns dos outros. Era cada um à procura de dois. Lá fomos emitindo os nossos próprios uivos, os sons mais fortes de que dispúnhamos, servidos de fome, de sono e de algum desespero.
Daí a pouco já estávamos de novo juntos, apalpando o caminho até um ponto onde a intuição nos dizia estarem umas ruínas de um moínho de vento que fora pertença da antiga aldeia de Vilarinho. Foi nessas ruínas que os três, já também em completa ruína moral, passámos a última noite, tendo umas pedras por travesseiro e a restante aguardente como remoto conforto. A chuva passou de leve a pesada, batendo sem piedade naqueles amados restos de paredes que nos protegiam. Mas, de manhã, tínhamos o nosso lealíssimo mini, ali, ao pé da barragem, na sua paciente espera.
Abeirámo-nos dele, ordenámo-nos em fila indiana e beijámo-lo, à vez, emotivamente.

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