quarta-feira, dezembro 10, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 11


"As bodas de oiro tinha-as celebrado o senhor Timóteo na casa dos oitenta. Uma década decorrida, estava ainda rijo e fero. Era o primeiro que se levantava na aldeia e, se não estivesse a chover, invariavelmente pegava do sachinho e ia mondar as ervas do quintal. Se o tempo estava mau, punha os óculos de aro fino de prata como se usavam antigamente, e com eles a escorregar da ponta do nariz enfronhava-se pela décima centésima vez numa página de Camilo. Então a Zezinha, antes de entrar, espreitava o avô. Sucedia amiúde soltarem-se-lhe as lágrimas dos olhos e ele tinha vergonha que lhas vissem.
O Senhor Timóteo pertencia à geração que fez o 31 de Janeiro e em conformidade era republicano de gema, e professava um liberalismo romântico e generoso. Era bastante culto, pouco devoto, à missa só ia à do Galo, e todavia sabiam-no muito mano-a-mano com o padre. Como o seu patrício Leite de Vasconcelos, costumava dizer: "Façam-me o enterro em sagrado porque, além de ser essa a lei de meus pais, etnograficamente é muito mais interessante que a civil".
À primeira missa do dia de Natal é que não faltaria por nada deste mundo. Fechavam-se as portas na casa e ia tudo. Ele caminhava atrás, mais devagar que os filhos, mas em regra não precisava doutro amparo além do braço da Zezinha. E era ainda mais para se guiar, porque já não enxergava bem, do que para ter arrimo, posto que não faltasse criado adiante com o lampião. À sua chegada, mesmo que a igreja estivesse coalhada de povo, abriam-se alas. E prosseguia no genuflectório, que à Quinta Grande era dado ter estrado próprio na imediação do púlpito.
(...) O senhor Timóteo tinha enterrado debaixo das lages na igreja os seus avós e era mormente por causa deles que vinha ali na santa noite de Natal.

(De "A Missa do Galo", de Aquilino Ribeiro, 1885-1963)

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