domingo, dezembro 14, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 15


"Em torno da mesa de pinho ceiam as mulheres. Com os cotovelos fincados nas tábuas, olham o vinho quente e cismam... Ceia de Natal! Ceia de Natal... Até as prostitutas se querem lembrar... Moídas de pancadas, têm más palavras, gritos, e um sorriso humilde. Fazem-se pequeninas para que lhes perdoem uma vida infame.

Falam! Falam!... Parece que a mesma primavera negra fez dar emoção a estas criaturas exploradas e servidas. Lembram-se da sua vida, sempre lágrimas, risos sem piedade... Uma começa:
- Ninguém canta?
E logo outra, como se as palavras lhe saíssem de golfão:
- Eu cá foi por fome que me desfrutaram. Ninguém queria saber de mim e a minha madrasta calcava-me aos pés.
- Eu não sei como foi...
- E eu então - continua - foi por fome. O meu pai estava encarangado e a minha madrasta era tão má, que, por eu me demorar num recado, partiu-me um braço.
- Pois eu foi assim de repente... - diz outra. - Ia pela rua fora. Vinha da fábrica, começou a chover e uma lama!... Tinha frio e um homem pôs-se a falar-me ao ouvido e a levar-me. Eu nem sei como aquilo foi... E a falar, a falar, até me doía o coração! E nunca mais o vi. Se o vir acho que nem o conheço.
- Enganam e nunca mais querem saber.
- A minha mãe bem me pregava mas a gente que há-de fazer?
- Ontem os soldados puseram-me o corpo todo negro - diz uma.
E mostra a triste carne magoada, os seios murchos e com nódoas. No ombro os ossos furam-lhe a pele.
- Quando eu morrer... Oh quando eu morrer!...
- Tola!
- Que tem? Tenho ali a roupa apartada.
- A mim, enganaram-me, levaram-me... Eu não sabia nada. Depois comecei a servir. Enganavam-me e punham-me fora... Depois não tinha mais para onde ir...
- Eu cá tive um filho...
Uma que estava calada soluçou no escuro. E como todas se voltassem pôs-se a rir e a ajeitar os cabelos.
- Eu tive um filho e pus-me a criá-lo. Depois disso o meu amigo nunca mais quis saber. Quando eu o procurava ria-se. Mostrava o inocente e ele punha-se a rir. - Mulheres não faltam, dizia-me. Vai-te! - E a gente fica feia. Vai um dia e disse-me: - Se cá tornas chamo a polícia. - Eu chorei até não ter mais lágrimas e acabou-se tudo. São todos o mesmo. Noutro dia vi-o, mas ele fingiu que não me conheceu.
- E o teu filho era bonito?
- Era um anjinho do céu. Tanto chorei que secou-se-me o leite de chorar. A gente sempre é mais tola!... Pôs-se muito chupadinho e morreu".

( De "Natal dos Pobres", de Raúl Brandão, 1867 - 1930 )

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