segunda-feira, dezembro 15, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 16


"Eu sentia-me vagamente cão. Nem admira. Quando um homem tem o coração cheio de epitáfios e vê outras pessoas felizes, é natural que se sinta cão.
Gente que sai das pastelarias irradiando espírito natalício; votos de boas-festas; música de sinos... Aquilo produzia-me um vácuo interior pior que a fome.
E lá ia eu pelas artérias da minha cidade, sob túneis de luz, as mãos enfiadas nos bolsos do capote, cabisbaixo, bafejando. Oprimia-me o ar radioso dos já raros transeuntes, a forma como passavam por mim, carregados de embrulhos coloridos, sem me verem. Que horas tão pungentemente evocadoras!
Existia uma via de fuga: embriagar-me. Pois sim, mas onde? Nesta cidade da província - na cidade onde eu nasci - não há nada aberto em noite de Consoada: até a taberna mais reles está fechada. Cafés, cinemas, tudo fechado. Restava-me, portanto, vaguear sozinho por artérias desertas; sob túneis de luz, ouvindo música de sinos - a gola do capote subida para as orelhas, tristonho, cada vez mais cão.
- Eh, mestre!
Era o Fonseca - tipo esguio, amarelinho, que trabalha num banco. Conhecera-o há meses. Sempre que passava por mim cumprimentava-me com uma espécie de condescendência, sem se deter.
Desta vez deteve-se.
- Então mestre, que se faz?
Falou com jovialidade, apertando-me vigorosamente a mão. Aquela mãozada e aquelas palavras estavam cheias de calor, de calor humano. Sentia-me menos cão".

(De "Noite de Consoada", de Altino Tojal, 1939 -)

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