quarta-feira, dezembro 17, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 18


Natal. Já tudo dorme, e só eu, em casa, rumino ainda as rabanadas. Que significam elas, afinal? O mundo está realmente povoado neste momento por uma nova esperança? Não se ouviram passos auspiciosos ao dar a meia-noite, nem houve, com certeza parto divino em nenhuma maternidade ou estábulo. Mas sabe-se que os grandes enviados chegam sem ruído, que o nascimento de que se trata é doutra natureza, que a luz esperada tem de acender-se dentro de nós. Por isso, quando digo mundo penso nos meus próprios limites, e neles procuro descortinar os sinais concretos da maravilhosa presença. Timidamente, aflora-me aos lábios uma palavra, que só de ser balbuciada aviva a chama da lareira. Amor - repito, alvoroçado. Mas não vou mais longe. Desalentadoramente, a boca, como um sino sem alma, deixa de vibrar. É que por artes de não sei que espírito invisível e demoníaco, começa a desfolhar-se diante dos meus olhos um calendário de dois mil anos. E, nele, a palavra mágica, que impulsivamente me saíu da alma, escrita em vão duas mil vezes..."


(De "Diário - IX", de Miguel Torga, 1907 - 1995)

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