quinta-feira, dezembro 18, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 19


"'Venha até lá casa no Dia de Natal', tinha-me dito aquele compatriota. 'Temos polvo guisado à portuguesa, e um arroz de amêijoas que o prepara Don Rufas. Vai ver que não se arrepende. Aquilo o que tem é ser casa de pobres'.
Não faltei ao convite, e não me arrependi.
Nunca perco o ensejo de ver como vive a nossa gente cá por estas bandas. Como vivem os de Nova Inglaterra já eu sei. Mas por aqui é diferente.
A casa é ali no East Side, na Rua 29, entre os italianos, num terceiro andar. Em quase todas as janelas há coroas de azevinho e buxo, por vezes uma vela acesa, uma mensagem de paz e alegria para quem passa na rua. Ao entrar, deixamos lá fora, na azulada luz do entardecer precoce, um resto de neve encarvoada, e a solidão que invade as ruas de todas as grandes cidades nestes dias de festa e de frio.
Subimos. De todos os apartamentos vêm gritos, música, risadas, aromas culinários. Uma subtil nostalgia de exilado despolariza-me: desejo, nestes dias de memórias festivas, estar por toda a parte onde fui deixando o coração em pedaços.
(...) Dora, a dona da casa, vem à porta num riso, e ajuda-nos a tirar os abafos, as galochas que pingam neve derretida.
(...) A cozinha tem uma janela para o pátio estreito, ou caixa de ar, que nos separa do prédio contíguo. Pelas vidraças embaciadas de vapor entrevejo vultos, pares que dançam, árvores de Natal iluminadas. Num parapeito, quatro vasos de flores, suspiram pelo sol.
Dom Rufas, rubicundo e lustroso, de óculos e avental de riscado, mangas arregaçadas, charlando com o mulherio, prepara entre rolos de vapor um colossal e rescendente arroz de "almejas". O meu anfitrião destapa uma panela fumegante, e revela-me o prometido polvo, chegado há dias de Portugal, no gelo. O estômago dos expatriados tem destas fidelidades.
(...) E quando se abre o forno e sai lá de dentro, com a majestade duma cerimónia episcopal, um formidável lombo de porco assado - um rolo tostado, todo atado e fumegante, nadando no molho de oiro líquido que perfuma a casa inteira, e mais, a memória deste dia pelos anos fora - não posso conter a exclamação risonha e comovida:
- Abençoada seja a fartura dos que trabalham, para todo o sempre!
E em coro os pobres - ricos só da força do seu braço e da sua vontade - dizem comigo:
- Amém!
A rádio estruge. Lá fora a neve, a neve festiva que adorna e purifica o negrume dos "slums" da cidade, recomeça a cair... Os pequenos gritam de entusiasmo e correm para a rua, arrebatando os agasalhos de inverno. A neve! A neve!
É o que se chama um Natal branco".

(De "Natal Branco", de José Rodrigues Miguéis, 1901 - 1980)

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