quarta-feira, dezembro 03, 2008

 

O Natal da Minha Biblioteca - 4


"Nasceu numa manhã clara de sol e perfume.
Seus olhos eram duas estrelas mansas pousadas no dia, a língua uma carícia de ternura e humidade.
Quando saltava na relva, ao lado das crianças, tinha-se a impressão de que o mundo recomeçava e ainda não se sabia nada das histórias tristes dos homens.
Um dia o menino disse:
- Como vamos chamar ao memé?
E a mãe sugeriu: "Flor".
E desde essa hora o cordeirinho foi mais do que um cordeiro a brincar na relva do jardim, tinha consigo um nome e toda essa solenidade de que os nomes, mesmo os mais vulgares, nos revestem.
"Flor" cresceu devagar. Sem projectos para os dias, sem horas apressadas, sem rancor a ninguém: abelhas e sol, seus companheiros.
Olhava-se para ele, no pequeno quadrado de relva e quase se imaginava que o mundo era uma tela imensa que Chagall pintara para nos diluir a tristeza e a solidão.
Quando Jesus nasceu em Belém, um homem veio e levou o cordeirinho.
Tristemente, a sua voz era, na noite, um grito desesperado de espanto e inaceitação.
Os meninos choraram seu primeiro grande desgosto e, em vão, tentam perceber esse meato que "Flor" deixou, a sangrar, nos seus dias.
Em Belém, o Menino Jesus também não entendeu.
E, na terra inteira, outros meninos nunca entenderão porque se matam cordeirinhos que nasceram para saltar, crescer, viver, livres e claros, na relva verde do Mundo. Ninguém entende.
Mas espera-se, no princípio de cada ano, que esse milagre - o do entendimento discreto das coisas simples - aconteça no coração dos Homens.
E espera-se, confiadamente espera-se que, no Mundo inteiro, os Homens suspendam a matança dos cordeiros de Belém.
Na relva verde de um jardim sem muros, "Flor" é o sinal, o esboço rápido, para esta imensa esperança
".


(De "Crónicas", de Maria Rosa Colaço, 1935 - 2004)

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