quinta-feira, agosto 13, 2009

 

Um Senhor Livro


Conheci-o numa Biblioteca de Jardim.
Sentara-se numa mesinha a meu lado, e eu abordei-o ao acaso, pedindo-lhe conselho de leitura.
Daí a nada, já eu estava mesmo a ver que o livro da minha tarde não seria outro senão ele: começou por abrir os braços e eu via mesmo que ele era um livro que se abria.
A seguir falou, aconselhando-me uma obra disponível, mas, de imediato, ele mesmo era essa obra ao vivo: o seu tom de voz era agora de arte; a expressão do seu corpo colocou-o num palco que se descerrava diante de mim; o seu texto era de uma elegância literária digna dos filósofos antigos.
- Sabe? Eu gosto muito de ler. – Disse depois.
E era assim que intercalava, de vez em quando, a sua prédica.
- Tudo o que sei é dos livros que leio. – Continuou.
E eu fiquei ali a tarde toda a ver e a ouvir o Livro que a si se lia para mim.
Daquelas barbas de prata pareciam sair tratados sobre metais preciosos, pois eram de filigrana os caracóis rebeldes que lhe pendiam do queixo; e de ouro puro eram as palavras de Livro quando reiterava Diógenes discursando ao sol diante de ninguém.
Só muito mais tarde me dera eu conta de que não escolhera texto nenhum na amistosa Biblioteca de Jardim; e que fora o Livro que me escolhera: um livro com lê grande, uma espécie de livro-enciclopédia, um livro-biblioteca, uma espécie de Bíblia.
E lendo eu também em Livro as linhas dos seus anos que estavam bem registadas na sua fronte, verifiquei que a sua sabedoria acumulada provinha igualmente das muitas páginas da sua vida.
Livro era, portanto, um ser precioso. Quando falava os seus olhos abriam-se aos horizontes longínquos como faróis.
Ali, entre a literatura da Biblioteca da Avenida Central, Livro era uma obra com pulsação, um audiovisual e um professor. Falava um pouco de tudo. Era um clínico de medicina geral.
Enquanto o ouvia, notei que o seu corpo era feito de diversos materiais e os seus movimentos lembravam o manuseio de ferramentas muito poderosas e também de outras mais delicadas e precisas.
A dado momento do meu espanto, não resisti a perguntar a Livro quem ele era e de onde vinha.
- A minha sina actual – disse –, resume-se a estar desempregado. É por isso que passo as minhas tardes na biblioteca. É um sítio bom para se estar.
- Mas o Livro, deixe-me tratá-lo assim – disse eu –, teria muita utilidade a trabalhar, não acha?
Livro parecia-me agora perplexo, incomodado com a pergunta, julgo mesmo que o feri com a espada das minhas palavras.
Por fim Livro reagiu, compassada e inexoravelmente:
- Saiba que quando perdi o trabalho fiquei às portas da morte. Cheguei a pensar que eu seria inútil; um peso morto. E ainda hoje, embora mais conformado, acho que morrerei desta doença.

(Também este meu texto está no Correio do Minho)

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